Sociologia

Em nossa mestiçagem, brancos resultam de diferentes brancuras, índios, de tribos diversas e negros, de várias etnias
 
José de Souza Martins* - O Estado de S.Paulo. 
 
SÃO PAULO - Muitos de nós aprendemos na escola a inverdade de que somos um povo que reúne três raças: a branca, a negra e a indígena. Os antropólogos já se cansaram de nos dizer que cor não é raça. E a "raça" da maioria nem é mencionada nessa classificação cromática: a dos mestiços. Além do que, antes de tudo, brancos, aqui, são mestiços de branco e branco, se levarmos em conta as enormes diferenças de brancura que há entre imigrantes que vieram do norte da Europa, como suíços, alemães e escandinavos, e os imigrantes que vieram da Itália, de Portugal e da Espanha. Negros, aqui, são mestiços de negro e negro, das várias etnias e diferentes culturas da África, que aqui chegaram como escravos. Índios são, no mais das vezes, mestiços de índios e índios, de diferentes tribos e nações, não raro filhos de mulheres de tribos inimigas, capturadas para compensar a falta de mulheres para procriação e trabalho, com a peculiaridade de que os nascidos na mestiçagem ficavam em categorias sociais separadas, de "impuros" e não autênticos. Sem contar a captura de mulheres e crianças brancas com o mesmo propósito.
 
Reuni e analisei, em meu livro Fronteira, algumas dolorosas histórias dessas crianças, reencontradas depois de adultas e entregues a suas famílias de origem: não se reconheciam, já não falavam a mesma língua nem podiam se comunicar. Os valores eram outros. Estavam sociologicamente mortas umas para as outras. Um dos mais dolorosos casos foi o de Helena Valero, adolescente que estudara em missão católica, falava português, espanhol e nheengatu, filha de mãe brasileira e pai espanhol. Flechada e raptada em 1937 pelos índios ianomâmis, quando estava com sua família na roça, só conseguiu escapar em 1957, já adulta, com marido e filhos ianomâmis. Ao reencontrar a família branca foi repudiada porque tivera relação carnal com o gentio e com ele procriara. Seria encontrada por dois repórteres de O Estado de S. Paulo, em 1997, às margens do Rio Orinoco, vivendo com nora indígena. Cega e já no fim da vida, tornara-se um ser humano sem sociedade, sem raça e sem identidade.
 
A mestiçagem oscilou e vacilou ao longo da história brasileira. No século 18, os livros brasileiros de genealogia mostram que o Brasil era um país de mamelucos empenhados na busca das raízes de sua brancura. Coisa curiosa aconteceu em São Paulo nessa mesma época. Até então, no geral, escravos eram os indígenas capturados no sertão. Em meados daquele século foi abolida a escravidão indígena e aumentou o fluxo de escravos africanos, em decorrência da difusão da economia do açúcar na região de Campinas. Deu-se, então, um deliberado enegrecimento da população. O cruzamento racial entre antigos escravos indígenas e as novas escravas africanas foi meio para nas crias fazer o índio retornar ao cativeiro, já que a escravidão se dava pela linha materna. E o mais espantoso foi o enegrecimento do Saci-pererê. Ente mítico indígena e tupi, durante o século 18 torna-se negro, com traços africanos, nas feições em que chegou aos causos caipiras e às histórias infantis e aí permanece. No entanto, comunidades negras tornaram-se culturalmente caipiras, isto é, assimilaram a cultura dos mestiços de branco e índia, provavelmente como forma de encontrar uma referência cultural de comunicação em face da sua própria diversidade étnica e lingüística. Diversamente do que ocorreu nas regiões canavieiras do Nordeste, de densa concentração de africanos, em que línguas e culturas originárias foram preservadas como componentes culturais de uma religiosidade ancestral protegida na dissimulação e na duplicidade do sincretismo religioso.
 
Negra não era a cor de uma raça, mas a cor do cativeiro: índios e africanos eram definidos como negros. A negritude, até forçada, tornou-se expressão cultural e política de uma violência. Quando em meados do século 19, com a cessação do tráfico negreiro ficou evidente que o fim da escravidão negra era questão de tempo, o Brasil optou por uma política de imigração seletiva da Europa que foi interpretada, nem sempre de maneira correta, como política de branqueamento da população brasileira. Branca não era a cor de uma raça, mas a cor da liberdade, sobretudo a cor do trabalho livre. Na época da implantação da República, a elite curiosamente partiu em busca de uma identidade mestiça e indígena, na pintura, na música. Em São Paulo, um Almeida Prado tornou-se Jorge Tibiriçá Piratininga e foi governador do Estado. Mas também um escravo negro, Nicolau, descendente de uma escrava africana chegada a São Paulo em 1700, nascido na Fazenda de São Caetano, amigo de Luís Gama, ao ser libertado, em 1871, adotou o nome de Nicolau Tolentino Piratininga, bem branco e bem indígena. As décadas finais do século 19 foram claramente décadas de construção de uma nacionalidade e de uma identidade nacional e não de busca de identidades raciais, a raça diluída numa ideologia política da mestiçagem, a consciência de que a raça dividia e a mestiçagem, sobretudo simbólica, unia e criava as bases da nacionalidade.
 
A chamada grande imigração inundou o Brasil, sobretudo o Sul e o Sudeste, com estrangeiros. Eles encontraram aqui uma cultura de assimilação que teve no mestiço o sujeito de sua ideologia racial. A valorização que ricos e pobres já faziam de uma supostamente heróica ancestralidade indígena fez da cultura caipira a referência comum de uma identidade na terra de adoção. A chamada música sertaneja, que se difundiu a partir dos anos 30, tornou-se a memória sonora de descendentes de espanhóis, de árabes, de alemães, de italianos. A dupla sertaneja de mais duradouro sucesso, a dos irmãos Tonico e Tinoco, é de filhos de espanhóis, colonos de café numa fazenda de São Manoel.
 
Só os anos recentes nos puseram em face de uma nova era na questão das diferenças de cor, a era da invenção de identidades raciais, garimpadas nos resíduos muito antigos do que um dia foram as etnias de origem de imensos contingentes do povo brasileiro.
 
*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)