Cultura Afro-Brasileira - Estudo da Alma Brasileira

CULTURA IORUBA   

 
Material de Estudo Grupo Pindorama - Estudo da Alma Brasileira
  Palestra de Juarez Tadeu de Paula Xavier 
 
Sou corintiano, apaixonado por futebol, e nas minhas atividades recentes, venho trabalhando com algumas idéias centrais de grande importância. Uma das idéias principais, como insistia o professor Milton Santos que faleceu há pouco tempo, é que se deveria fazer a angulação sobre a questão da presença do negro no Brasil. Ele dizia o seguinte: "Nós temos que pensar a presença do negro sob três perspectivas possíveis: da fábula, da realidade e da possibilidade. Nós abandonamos a perspectiva da fábula."
 
Democracia Racial
 
 Não trabalhamos com a idéia de que vivemos numa democracia racial. Há evidências materiais, políticas, teóricas e intelectuais, para mostrar que não existe essa chamada democracia racial. Abandonamos o universo da fábula e estamos trabalhando com a idéia do real, tentando entender, dessa nossa perspectiva, o que aconteceu com a presença negra no Brasil. O que é que ela tem de singular, de particular, de especial, de comum e simétrico em relação a outras experiências, e o que ela tem somente brasileiro; e como um último componente, - o que podemos fazer no Brasil? Dividimos o que vamos falar em dois momentos: - um é o da nossa interpretação sobre a presença do negro no Brasil, qual a sua particularidade e singularidade, - outro, é sobre a cultura iorubá, que é uma cultura especial aqui, apesar da presença dos africanos de matriz iorubá ser pequena entre nós, quase se restringindo a uma pequena região, em Salvador. Essa cultura depois se espalhou pelo Brasil e hoje pelo mundo afora. Tivemos recentemente um encontro de tocadores e eu tive a grata satisfação de conhecer em excelente tocador japonês, que veio do Japão pra fazer samba... Só o Brasil... Só o Brasil... Só o Brasil...
A presença iorubá no Brasil é fascinante. Vou discutir com vocês a cosmologia, as deidades e os mitos. São mitos extraordinários. São pequenas peças poéticas construídas num espaço de 40.000 anos.
Também milito, por razões óbvias, contra a discriminação racial. Faço parte de uma entidade chamada UNEGRO, União de Negros pela Igualdade, e temos hoje, dois projetos que são prioritários: primeiro, o atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco, na região do Jardim Brasil. Trabalhamos com crianças perseguidas por policiais, que são matadores na periferia de São Paulo, também chamados de “pés-de-pato’. Montamos uma casa onde atendemos essas crianças. Em segundo lugar, no campo da religião, estamos fazendo uma pesquisa sobre o cenário das religiões afro-descendentes. Trabalhamos com as três matrizes africanas no Brasil: Bantu, Gege e Ioruba. Fizemos em São Paulo uma visita a mais de 1000 casas de tradições africanas, e elaboramos uma pesquisa de âmbito nacional visando a criação de políticas públicas adequadas. Em nenhum outro campo da atividade social, a discriminação é tão evidente como no campo religioso. Ainda hoje existem perseguições. Com base nisso é que dividimos a compreensão que temos da questão do negro em dois grandes momentos: um antes e um pós-abolição. Fizemos a opção de estudar melhor a presença negra no Brasil de 1808 até 1850, em um primeiro momento, de 1850 a 1870 e de 1870 a 1930. A partir daí fizemos outras duas grandes divisões: 1950, 1970, e a atualidade; isso porque nós queremos entender como se criou essa mecânica da exclusão. Para nós é interessante entender como se criaram e se materializaram na sociedade brasileira, mecanismos para que a população negra não conseguisse realizar os seus projetos. Trabalhamos tendo como epicentro básico o ano de 1850. No trabalho que estamos fazendo no campo acadêmico, o ano de 1850 é o ponto de inflexão da construção da trajetória dos afro-descendentes no Brasil. O ano de 1870 explica a formação do estado brasileiro, a relação que os negros passam a ter com a sociedade e a sua situação de subalternidade. Neste campo, temos travado diálogos fundamentalmente com o teórico Clóvis Moura, que é sociólogo militante, e é uma pessoa muito generosa na produção acadêmica.
Em 1850 ocorrem três fatores importantíssimos para entendermos o Brasil de hoje. O primeiro foi a decretação da lei da terra que teve grande impacto na organização política, econômica e social e um impacto extraordinário sobre a vida dos negros. O segundo foi o período onde definitivamente eliminou-se a possibilidade do tráfico negreiro no Brasil. O primeiro tratado é assinado em 1831 mas não é levado a sério, dizia-se dos acordos: "coisas para inglês ver", só os ingleses acreditaram naquilo. Foi apenas em 1850 que o tráfico chegou ao fim, e que se concluiu que a escravidão era impossível de ser mantida e preservada, começando a se adotar mecanismos determinados para desmontar essa máquina cruel. Até 1888 isso aconteceu de forma lenta, gradual mas extremamente segura. Esses três fatores, no nosso ponto de vista, são importantes para entendermos a realidade político-social brasileira, hoje.
Com relação à questão da terra, que era o bem primário de produção, na medida em que se tirava a possibilidade do estado ceder terra, criava-se uma nova forma de aquisição que era através da poupança individual ou familiar. Uma população escrava, portanto, privada da possibilidade de constituir poupança, individual ou coletiva/familiar, ficava alijada da possibilidade de aquisição do bem mais importante. É um problema que se estende na sociedade brasileira até hoje. Basta viajarmos para alguns cantões do Brasil e veremos aqueles acampamentos de lonas pretas dos trabalhadores rurais sem terra, e várias outras organizações. No nosso entender, com a lei da terra de 1850, foi esculpido, pela falta de acesso do negro à posse da terra, o seu não ingresso na estrutura de produção, absolutamente importante e fundamental.
 
 Transição Demográfica
 
 Num segundo aspecto, o problema da não renovação do estoque humano, ou o fim do tráfico, traz uma conseqüência: ao observar os dados demográficos, podemos ver que é em 1850 que acontece uma transição no Brasil. Nessa fase final, a vida útil do trabalhador escravo, do homem africano e da mulher africana escravizados, era de 5 a 7 anos. O homem que começava na labuta aos 7 anos de idade, aos 14 ou 15 anos estava imprestável para a atividade produtiva e o índice de morbidade era muito grande.
A não renovação do estoque humano foi definindo a composição e a transição demográfica do Brasil nesse período. A população negra passa a não ser mais a maioria absoluta da população. Cria-se um estatuto que ainda hoje apresenta sérios problemas quanto à classificação de quem é não-branco e não-negro, na sociedade brasileira. O senso dos anos 80 chegou a classificar cerca de 136 definições diferentes de “não branco” no Brasil, como por exemplo, pretinho ao entardecer... azul escuro... uma loucura! Consta de um dos livros do Clovis Moura e mostra a dificuldade desse tipo de classificação. Diferente, por exemplo, dos EUA: o indivíduo é branco ou é preto e aí, o problema está resolvido.
O terceiro aspecto que trouxe um mecanismo muito perverso de desmonte da escravidão, foi a lei dos sexagenários, isto é, quem tinha mais 60 anos estava finalmente livre, livre para morrer em liberdade. Existiu também a lei do ventre livre, de 1871, em que a criança tinha que ficar sob a posse do proprietário até completar 18 anos e trabalhar um período para pagar a abolição, estando praticamente imprestável para a atividade social após esse período.
Vários outros mecanismos foram construindo o que, em nosso ponto de vista, formou a matriz da existência de tantas crianças de rua, sem a menor possibilidade de acesso à cidadania. Esses três fatores, segundo creio, esculpiram a situação em que vivemos hoje. O estado brasileiro de hoje é de certa forma, produto desse panorama pois nunca teve preocupação efetiva com políticas sociais. É difícil para um país que tenha vivido 300 anos sob o impacto da escravidão, pensar minimamente em estatuto de cidadania. Até hoje é muito complicado. Eu mesmo tenho um trauma: quando eu era muito pequeno, minha mãe me dizia: “nunca saia de casa sem a carteira de identidade”. Então eu tenho a obsessão de levar sempre um documento aonde for. Nem sempre vale de alguma coisa, mas pelo menos é mais fácil eu me identificar quando sou preso... tem suas vantagens!
 
Período de 1870 a 1930
 
Por uma razão muito especial, é neste período que aportam ao Brasil as principais idéias de um projeto que lança raízes profundas – supostamente um racismo científico. Queremos entender como é que o brasileiro pensava o Brasil naquele momento, e como essas idéias de racismo são inseridas na sociedade brasileira, marcando até hoje, o perfil das pessoas que aqui vivem. A idéia de racismo na distribuição de bens sociais, racismo de pensamentos e outras formas, estão muito presentes na nossa sociedade.
É justamente neste período que surge a idéia de um projeto para o Brasil com o objetivo de eliminar a presença negra. Essa foi a idéia mais perseguida pelos construtores do Estado Brasileiro: eliminar a presença do negro, do ponto de vista cultural, político, social e religioso.
Os intelectuais brasileiros, - um dos principais integrantes deste grupo foi Roquette Pinto, - fascinados com esta possibilidade, montavam diagramas sobre o futuro do Brasil. Eu até reproduzi um texto da Lilian Schwarcz que sugeria o Brasil do futuro. Foram utilizados especialmente os dados demográficos de 1870, 1871 e 1872, mas a previsão estava totalmente errada, aliás, um dos maiores erros estatísticos que eu já conheci. Acreditava-se que fôssemos chegar ao ano 2112, com a seguinte composição étnica racial no País: 80% da população seria branca, pelos padrões de branqueamento que se imaginava; não existiriam mais negros; os índios seriam 17% e os mestiços seriam 3%. Imaginava-se um Brasil branco e de traços europeus.
Nesse período não se tinha apenas a idéia da eliminação conceitual do negro, mas também a idéia de se reinventar o barroco brasileiro. Não se tratava de recriar projetos políticos e sociais; a idéia das classes dominantes, era a eliminação da presença física do negro, mesmo! Foi seguindo este pensamento que se permitiu a emigração européia no período de 1870 a 1930. O professor Darcy Ribeiro trabalhou esta questão de forma muito interessante. Ele mostra como a emigração européia modificou a população brasileira, que de predominantemente negra, começa a ter contornos cada vez mais brancos, a partir de 1970. Era vedada neste período, a imigração de negros (negros livres dos Estados Unidos não puderam imigrar para o Brasil) e asiáticos. Até 1910 os japoneses não podiam entrar no Brasil e a idéia que predominava era que se tinha que branquear o país. Trabalhando com a idéia da imperfeição racial, eles reinventaram Kant que falava da perfeição racial e em especial da imperfeição do homem. Os negros jamais seriam capazes de constituir um estatuto de civilidade! Era essa a idéia dos teóricos brasileiros. Isso é muito interessante porque tem eco na filosofia ocidental. Hegel usa isso quando fala sobre a realização do espírito. Diz o seguinte: "os negros tenderão a vagar na escuridão da sua ignorância". O que nos interessa nessa idéia é o sentido da eliminação física do negro, era essa a obsessão, trabalhava-se com esse mecanismo.
O estudo que se faz hoje na América Latina mostra que a Guerra do Paraguai foi um projeto de limpeza étnica de países como a Argentina que conseguiu reduzir a sua população negra. Quase não há negros na Argentina, mas há uma reversão perversa, porque a dialética humana é extraordinária. Hoje a Argentina é o país que tem o maior número de terreiros de candomblé na América Latina. No Uruguai a presença negra reduziu-se a cerca de 15% e hoje é quase insignificante assim como no Paraguai. O Brasil não conseguiu levar a cabo este projeto dada a grande maioria de negros na sociedade brasileira.
No livro "Viva o Povo Brasileiro" de João Ubaldo Ribeiro existe uma passagem mitológica sobre a guerra do Paraguai, que aborda justamente a presença africana, especialmente a iorubá e as deidades nativas paraguaias. Vai mostrando que vários mecanismos sociais possibilitavam a eliminação dessa presença negra. Em "Os Sertões", de Euclides da Cunha, o projeto de faxina e limpeza étnica no país também é evidente. Existem passagens brilhantes mostrando como foi acalentada a idéia de suprimir a presença negra. Outro detalhe da perversão da dialética, parte dessa população de Canudos que sobreviveu ao massacre e é removida para o Rio de Janeiro. Em 1910, quando a cidade passa por um processo de reurbanização e começa a fazer os aterros, essa população é chutada para os morros. Com saudades de uma planta nativa do sertão baiano que crescia nas encostas e era muito resistente, chamada favela, deram esse nome a suas casas e plantaram essa denominação na cultura brasileira.
Tudo isso mostra o projeto de eliminação da presença física do negro na cultura brasileira que vai até 1930. A partir do fim da escravidão, dividimos a presença do negro no Brasil em quatro grandes módulos: logo depois da abolição veio um momento que gostamos de chamar de período da ingenuidade; depois veio o período dos principais estudos, onde se pensava uma perspectiva mais realista da presença do negro no Brasil, por volta de 1950; depois o período da militância política nos anos setenta do século vinte; e o período que vivemos agora.
Até 1930 o projeto nacional não tinha mudado muito, não existiam políticas sociais que pensassem na incorporação dos afro-descendentes, pois na verdade não existiam políticas sociais no Brasil. Rodrigues Alves dizia que a questão social no Brasil era uma questão de polícia, as greves dos anos dez do século vinte foram violentamente reprimidas, não havia diálogo nenhum e nem se pensava na situação dos negros. Nesse período a população afro-descendente sai da escravidão numa situação de miserabilidade absoluta e começa a tentar ingressar na estrutura social brasileira. Houve dois grandes projetos: um projeto reinventava o espaço ancestral cosmológico dos africanos no Brasil;foi muito eficiente e por isso, bem sucedido. Recriou-se a África no Brasil. Há aqui pedaços genuínos da África, graças às estratégias definidas fundamentalmente por mulheres africanas. O outro projeto, ou melhor,a outra estratégia era a de tentar entrar na estrutura social. Constava em ficar tão branco a ponto de ser aceito pela sociedade branca. Nos estatutos das organizações negras daquele período existiam detalhes de como cortar as unhas bem rentes para que o negro pudesse ficar perto do padrão de comportamento social, detalhes de como pentear o cabelo, de como se vestir ou de como se portar, que tipo de organização sócio-cultural poderia dar-lhe ingresso na sociedade, etc.
O projeto naufraga de uma maneira impressionante, e o epicentro desse naufrágio são os anos 30, quando se organiza no Brasil, a Frente Negra Brasileira, que nasce no bairro do Bexiga; antes de ser um bairro italiano, este foi um bairro negro, e lá, num projeto de rearticulação político-cultural, nasceu a escola de samba “Vai Vai". Os velhos e as velhas que fundaram a escola, tinham o objetivo de reinventar a cultura banto na cidade de São Paulo. Ainda hoje existe um antigo candomblé no centro do Bexiga.
A Frente Negra Brasileira tinha como objetivo, ser uma organização político- social, de caráter nacional, fundamentalmente formada por afro-descendentes e visava sua incorporação à sociedade brasileira. O ano de 1930 também marca um outro período importante: acontece a nacionalização do mercado de trabalho. Até 1.930 o mercado era quase que restrito a algumas regiões do Brasil, em especial à região Sudeste, sendo também restrito ao imigrante. Com a perspectiva até de quebrar o movimento sindical que vinha se formando nos anos dez e vinte, Getúlio Vargas cria a chamada Lei de 1/3, onde a representação sindical e o mercado de trabalho tinham que absorver, pelo menos, um terço de trabalhadores nacionais.
Os negros começam a entrar no mercado de trabalho, de forma acentuada, a partir desse período, e a Frente Negra numa visão otimista, ministrava cursos de datilografia, cabeleireiro, garçom, etc. Tinha uma modalidade importante para a presença do negro na sociedade brasileira que era a de participar de concursos públicos, a partir dessa segunda fase da República. Hoje ainda existem muitos negros em repartições públicas, porque de 1930 até provavelmente 1970, o acesso ao emprego público era uma estratégia da Frente Negra Brasileira.
Em 1937, esse projeto é "afogado", com a instituição do Estado Novo e Getúlio fecha a Frente Negra. Alguns dos seus membros são presos e a Frente é colocada na clandestinidade. Em 1935 eles se aproximam dos aliancistas e com a Frente Negra fechada, passa-se por um período que vai de 1930 a 1950, onde quase não se tem estudos sérios no setor urbano sobre a presença do negro na sociedade brasileira. Existem raras exceções, como no Rio de Janeiro e Salvador, onde esta presença é muito forte por causa da capoeira. A Capoeiragem como o Candomblé exigem estudos específicos. Chegamos depois a uma fase importante que é a fase dos estudos. Do nosso ponto de vista esta é a segunda grande fase da presença do negro na sociedade brasileira após a abolição.
 
 
Democracia Racial
 
Por volta de 1950, a UNESCO quis entender o que acontecia no Brasil.
No final da segunda guerra mundial, os problemas raciais tomavam conta do mundo inteiro. A segunda guerra é encarada como um grande problema de caráter racial. Nos Estados Unidos, de 1922 a 1960, aconteceram conflitos violentos quando foi feita a classificação do senso e se tirou das pessoas, a possibilidade se caracterizarem como mulatas: ou se era negro ou se era branco. O mesmo aconteceu na Europa, principalmente na Espanha: a região basca tornava-se reconhecidamente violenta nesta época. Na África, que passava por um processo de descolonização, surgiam problemas com freqüentes atos violentos também motivados pela questão racial. Na Ásia, onde começava a se desenhar o projeto de independência da Índia, também aconteciam conflitos da mesma espécie. Enfim, no mundo inteiro se discutia a questão racial, e no Brasil surgiam os grandes trabalhos de Gilberto Freyre, que não usando a expressão democracia racial, trabalhava com a possibilidade de que houvesse uma confluência de classes e raças no Brasil, pautada na idéia da generosidade da cultura portuguesa.
Queria-se entender como é que no mundo inteiro é deflagrado um processo de conflito racial, e no Brasil, com o histórico da presença do trabalho negro africano, - um dos últimos países a abolir a escravidão no ocidente, - se acredita em democracia racial?
A UNESCO começa a investir em estudos sobre esse tema. O professor Roger Bastide vem ao Brasil e começa a desenvolver a Cátedra de Sociologia na Universidade de São Paulo, discutindo a questão racial no setor urbano. Tais estudos encantam um jovem filho de imigrantes, Florestan Fernandes, que se interessa por este campo e começa a escrever um clássico da sociologia brasileira que aborda a questão racial, e que é "O Ingresso do Negro na Sociedade de Classes". Outras pessoas vão sendo incorporadas a esses estudos, entre outros, o professor Otávio Ianni, e o próprio Fernando Henrique Cardoso, que mesmo falando mal dos professores de hoje, um dia estudou a questão racial na região sul do país, em seu trabalho de doutorado, que é muito bom. Alves Moura também começa a trabalhar com isso e abre-se um grande campo de pesquisas, tentando superar a falta de um modelo de pesquisa mais próximo do brasileiro, do que foram as tentativas de Nina Rodrigues e de Artur Ramos, em épocas anteriores. Com estes estudos procura-se entender a presença do negro no tecido social urbano brasileiro, em especial nas grandes metrópoles. Aí começa a aflorar um outro Brasil, e a idéia de democracia racial começa a rigor, a ser desmontada neste período. Esses estudos mostram que há um índice maior de morbidade e miserabilidade entre os negros, e que a mulher negra é o epicentro de toda a articulação simbólica de violência social, econômica e política. É o ser mais pobre na sociedade brasileira. Esses estudos mostram também que o negro não tinha ingresso à educação de qualidade. Retoma-se nesta época, uma certa militância pois pessoas extraordinárias dão grandes contribuições. Entre elas temos: Abdias Nascimento na sociologia brasileira discutindo o problema do negro na sociedade, Solano Trindade, na poesia, que através de seus sonetos vem cantar a questão do negro no Embú. Ele reivindica uma idéia de que gosto e com a qual eu trabalho nessa entidade em que milito, e que diz: "Nem todo branco é meu inimigo, como nem todo negro é meu irmão. Meus irmãos são aqueles que lutam pela afirmação do povo negro, liberdade, etc." Este seu trabalho, tão importante para entender a questão racial, incorpora a discussão de classes.
Sua filha, Raquel Trindade, tem um trabalho muito bonito e importante nessa região, e o Solaninho participa também na música tocando tambor. Surge ainda neste período, o Teatro Experimental do Negro, com Rute de Souza e Milton Gonçalves, artistas conscientes de sua militância política. Este momento é de grande importância para mostrar que aquela idéia mitológica e fabulosa, de uma democracia racial, tinha chegado ao fim, pelo menos conceitualmente. Ingressamos então num novo período, os anos 70 do século 20, são também os anos da militância negra, por algumas razões muito simples: primeira, a ditadura militar proibia a discussão da questão racial. Uma das definições de governo é que não se podia incentivar a contradição de raças pelos meios de comunicação, então não se discutia a questão racial no Brasil.
Segunda, o Brasil assina todos os principais acordos de combate ao racismo no mundo, e passa a ser o modelo paradigmático de sociedade democrática na questão racial. Todos esses projetos foram implementados nos anos sessenta. Em 1969, saiu a "Convenção Mundial de Luta Contra Todas as Formas de Discriminação Racial" e o Brasil foi um dos primeiros países a assinar essa convenção. Acreditava-se que o país vivia uma absoluta democracia racial.
Nos anos setenta, surge uma situação muito interessante do ponto de vista sociológico: aquelas famílias negras que nos anos 30 e 40 do século 20, ingressaram no serviço público, começaram a mandar seus filhos para as universidades. A primeira geração de afro-descendentes formados, começa a tentar entrar no mercado de trabalho nos anos 70. Surgem os primeiros geógrafos, historiadores, jornalistas e economistas, que tinham passado por uma situação diferente da anterior. Estas pessoas têm diploma universitário, qualificação profissional, e não entram no mercado de trabalho; não conseguem furar a barreira do mercado de trabalho e quando entram, recebem pouco, ou seja, estão numa situação de menor valia do ponto de vista profissional. Cria-se uma situação especial, isto é, a tentativa de retomar uma ação política mais articulada em âmbito nacional. São os filhos daqueles que ingressaram no serviço público no passado, que foram para a universidade e que começam a repensar essa situação. Isto se articula com dois outros fenômenos que criam um impacto de forma muito precisa na organização política dessa juventude negra nos anos setenta. A primeira trata do fim das colonizações dos países africanos, os últimos países que deixam de ser colônias em 1975, Angola e Moçambique, através de uma luta heróica e revolucionária do povo para acabar com o período colonial. O impacto no Brasil é muito forte. Lembro-me que em 1976 assisti um filme que foi decisivo para a minha vida. Um filme chamado "Moçambique, Essas São as Armas", que mostrava Samora Machel, grande poeta e líder da revolução de Moçambique, rodando pelas cidades do país, estimulando a população à luta revolucionária. É um filme extraordinário. Nunca vi nada igual.
A luta contra a colonização dos países africanos foi muito importante para a jovem população negra universitária brasileira. Outra coisa importante foi a retomada da luta política dos negros nos Estados Unidos, em especial através de uma organização chamada "Poder Negro", os “Black-Power”, e também os "Black Panthers", Panteras Negras, que têm forte influência na juventude negra brasileira. Os Black Panthers procuravam assimilar parte da teoria marxista. Não podemos esquecer que Marcuse deu aulas nos EUA, e foi professor de Angela Davis, a primeira mulher candidata à presidência dos EUA, militante dos Black-Panthers. O seu marido foi preso e ela organizou um grupo de assalto, invadiu a prisão e resgatou o marido.
Os núcleos dos Black Panthers foram todos destruídos; jovens de 20 a 25 anos foram mortos pelo FBI. Além desta ação criminosa, outras estratégias são usadas contra os negros. Uma que que continua sendo praticada até aos nossos dias é a introdução de drogas nos guetos negros das grandes cidades, para tentar desmontar a liderança dos Black Panthers, incentivando o uso dessas substâncias de forma indiscriminada. Existe um filme chamado "Os Donos da Rua", de um jovem cineasta norte americano que fala sobre este tema
Estas lutas influenciam a juventude negra no Brasil, e em 1978 é criado o "Movimento Negro Unificado" MNU, que procura articular o que existe de mais crítico entre os jovens negros. Pretende-se entender o Brasil para então lutar contra o racismo. Surge esse movimento unificado que tinha como um dos epicentros, a Universidade de São Carlos, composto por jovens intelectuais negros. Henrique Cunha e Ivair faziam engenharia nessa universidade. Ambos foram depois para a África ajudar generosamente na reconstrução de alguns países africanos. A perspectiva desse movimento negro unificado era produzir um projeto político de combate ao racismo. Fez-se a primeira assembléia em frente ao Mappin com 5000 pessoas. Porquê o Mappin? Naquela região do Centro de São Paulo, a juventude negra se encontrava para discutir problemas comuns e também para dançar. Nesse período havia uma certa conjunção de fatores: jovens negros foram mortos pela polícia, o que criou uma situação de revolta aparecendo não só o MNU, mas também o grupo chamado Quilomboje, que é um grupo de poetas e escritores negros, que desde então nunca mais deixaram de lançar livros importantíssimos sobre a questão racial, e criaram uma tradição literária de cultura e de poética negra. Cria-se o "Grupo Cativeiro" que é um grupo de capoeira, do qual faço parte. Tratava-se de um grupo de jovens mestres em capoeira que queriam romper com o legado maluco que vinha desde 1934, quando Getúlio tentou criar um elemento de identidade nacional através da Capoeira, como esporte nacional. Foi uma grande bobagem o que fizeram em relação a este esporte. A tentativa desses jovens mestres era fazer com que a Capoeira recuperasse seu legado negro, no jogo, na jinga diferente. Se olharmos grupos como o Abadá que pensa a Capoeira como esporte de competição, percebemos como os capoeiristas parecem robôs. A Capoeiragem negra é diferente, tem diálogo, tem uma motricidade que é de combate, de eficiência, mas também de poesia. Na roda de capoeira é preciso dialogar com as pessoas, é preciso interagir com os outros. Procura-se recuperar o verdadeiro toque de berimbau, que é aquele toque que faz percutir o corpo, e não a coisa marcial conhecida; o toque é mais cadenciado, mais gostoso. Procuramos recuperar todos esses legados, e a juventude cria uma situação interessante quando vai para a universidade com uma nova perspectiva de recuperar os seus valores negros, e não mais com a intenção de querer ser igual ao branco. Eu sou negro, tenho uma história, uma cultura e uma forma de ver o mundo. Isso cria uma situação nova que é o que eu chamo de militância contemporânea do negro no Brasil. Em 2000, Ricardo Francklin defendeu uma tese de doutorado de Psicologia na USP sobre "A Construção da Identidade do Afro-Descendente". Ele tem uma forma muito interessante de abordar este tema, e chama de ingenuidade o comportamento desse período de contato com a discriminação racial, a militância política e a articulação. Eu passei a incorporar essa denominação ao meu trabalho.
 
Articulação
 
O período em que vivemos hoje é de articulação; procura-se a integração com os setores sociais para poder combater a questão racial, para superar esse legado. As pessoas tendem a procurar o entendimento sobre o que acontece efetivamente com o negro no Brasil. Hoje há como que uma convergência dos jovens intelectuais negros para esse trabalho, não como um problema de exclusão, preconceito, discriminação e racismo. O preconceito é a idéia pré- concebida, pré-conceituosa de menor valia do outro, e acontece normalmente em relação às mulheres, às pessoas gordas, aos homossexuais, enfim acontece em relação a quem apresenta opções diferentes da maioria.
Uma amiga minha fez um trabalho de mestrado na Educação da USP, observando uma sala de crianças de educação pré-escolar. Ela montou uma metodologia interessante para observar a distribuição de afeto dos professores entre as crianças negras e as crianças brancas. Ela observou que os professores não tocavam nas crianças negras, não abraçavam estas crianças, ao contrário do que faziam com as brancas. Depois de um ano de observação e entrevistas com os professores, a resposta de uma professora, resumiu a questão da seguinte maneira: "hoje não tem mais problemas de racismo, a indústria da cosmética resolveu este problema. Hoje tem sabonetes, perfumes, desodorantes, etc.". Discriminação está em não querer toca no outro, por exemplo. Para surpresa nossa, uma cidade onde se constatou maior preconceito discriminatório, no sentido de separar pretos de um lado e brancos do outro, foi Salvador. Foi a cidade onde se encontrou o mais alto grau de segregação espacial: os negros ficam do Pelourinho para lá, até o Curuzu, e os brancos na orla. Essa é uma ação discricionária. O que essa nova juventude intelectual afro-descendente está levantando em seu trabalho, é que o racismo tem uma conotação diferente no Brasil, ele recupera aquele legado do projeto do final do Século XIX. O racismo no Brasil é genocídico, implica em maior índice de morbidade junto à população negra. No Brasil não existe problema se um homem negro namora uma mulher branca ou vice-versa, isso é bobagem, são opções pessoais. O racismo no Brasil tem implicação no índice elevado de morbidade da população afro-descendente. Como se chegou a isso? Começamos a cruzar vários dados quando iniciamos a discussão da violência contra crianças e adolescentes negros. Constatamos que as crianças eram mortas por armas de fogo, por grupos de matadores profissionais chamados "pé de pato", pela violência policial, ou pela violência entre os grupos. O perfil das vítimas, era de meninos, de 14 a 16 anos, afro-descendentes, envolvidos com o tráfico de drogas. Meninas não participavam deste perfil porque já tinham migrado para a prostituição nesta fase da vida. As crianças mortas nesse período tinham cor e sexo. Depois começamos um trabalho eficiente sobre a violência contra a mulher negra, e chegamos a um alto índice de esterilização. No desenvolvimento deste trabalho foi encontrado um documento produzido pelo departamento de estado norte-americano na década de 70, chamado MSSM-200, na época em que o Bush era o chefe da CIA e o Ronald Reagan, presidente dos EUA. Constava em tal documento que havia vinte países no mundo que começavam a se tornar potências mundiais, e entre eles estava o Brasil, a Índia e a Nigéria. Os Estados Unidos estimulavam uma política de esterilização e a argumentação do departamento de estado norte-americano era sobre a supremacia anglo-saxônica da população do mundo. Incentivavam políticas de esterilização e hoje o Brasil, por exemplo, é um dos países que tem um dos mais altos índices de esterilização, de mulheres em período reprodutivo, de treze a cinqüenta e seis anos, principalmente em Pernambuco, Maranhão, Bahia, Alagoas, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Os menores índices situam-se no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Quando se cruzam esses dados com a presença populacional, começa-se a entender o mapa. A mulher esterilizada não é branca, é jovem, e tem pelo menos um filho.
Outro dado é sobre a distribuição da fome. Cruzando esses dados vamos ter grandes manchas de violência social no Brasil, especialmente nos estados do norte e nordeste como Bahia, Pernambuco, etc. Essa juventude negra começou a adotar no seu trabalho de pesquisa, a reflexão de que o projeto do final do século XIX, de certa forma, ainda está em andamento na sociedade brasileira, implicando num alto índice de morbidade. Não é enunciado, não é dito, não é proclamado, mas é executado, e todos os indicadores sociais macrológicos apontam nessa direção. É fácil constatar isso pelo site do IBGE e por todas as pesquisas que estão sendo feitas.
Colocamos este assunto do ponto de vista político, usando a perspectiva do Milton Santos de conhecer o Brasil. Todo o exercício que os afro-descendentes têm feito é para trazer um diagnóstico acurado. Que Brasil é este? Que país é este? Que loucura é esta? Que situação é esta que nós vivemos?
 
África no Brasil
 
Acabamos de falar de um processo que tentou entrar no projeto político social, que acreditou na democracia racial mas que se deu conta de que isso não existia no Brasil. Há um outro projeto que foi executado com muita eficiência, e tratava de reconstruir espaços negros no Brasil. Isto eu acho mais importante, fundamental e o meu objeto de estudo tem sido este. Como é que os africanos reinventaram a África no Brasil? Como é que eles foram deixando esse legado? Há várias possibilidades de trabalharmos com essa idéia. O que eu sugiro no meu trabalho acadêmico e religioso é limpar tudo aquilo que aprendemos sobre o negro, só assim entenderemos a complexidade da presença afro-descendente.
Muitos dos nossos legados estão insuficientemente construídos. Os óculos de angulação sobre a questão do negro têm deformações violentíssimas que não cabem dentro de uma reflexão sobre a questão negra no Brasil. Alguns mitos que foram construídos e nos quais acreditávamos piamente, não têm correspondência com a realidade; é como se fosse aquela passagem da Divina Comédia quando o sujeito vai entrando no inferno, isto é, ao transpor essa porta, deixa do lado de fora todos os preconceitos, mitos e etc. Em relação à questão racial é necessário fazermos isso. Ao querer discutir a questão racial e a presença negra no Brasil, é necessário repensar os modelos de reflexão, os paradigmas, preconceitos, e opiniões solidamente construídas, porque elas tendem a não corresponder à realidade.
Vamos trabalhar com três instrumentos que não são teóricos ou epistemológicos, mas sim, instrumentos de compreensão do que é o negro. Sugerimos que se pense “o negro” através de três angulações fundamentais para ele, na construção da sua história. A primeira trata da importância da oralidade. Quem não entende a questão da oralidade e da fala nas culturas africanas, nunca entenderá a profundidade da cultura negra. A segunda, que é importantíssima, é a relação espaço-tempo. Poucas vezes nos damos conta de que quando pensamos a relação espaço-tempo, a construção de uma história no espaço dado, as referências mudam radicalmente. A terceira angulação para entender as culturas africanas, é a relação que isso tudo tem com a ancestralidade.
O africano vive para manter vivos seus ancestrais, esse é o legado dos africanos. Entre os Iorubas, por exemplo, se registra o menor índice de suicídio, especificamente suicídio de velhos.
Esses três elementos são importantes para entender a cultura africana, no geral, e a Ioruba em especial.
 
Oralidade
 
Aprendemos nos compêndios escolares que a história começa com a escrita. Passamos a classificar os povos que não têm escrita como povos bárbaros. A história foi sendo construída sempre com deficiência técnica. Para o africano em geral e para o Ioruba em especial, a oralidade não é uma deficiência da capacidade gráfica. Para o africano a oralidade é a eficiência da preservação de uma palavra que lhe foi dada, que é a palavra sagrada que não pode ser deturpada.
O africano dá importância à oralidade porque esta lhe foi dada pelo Ser Supremo, a quem os ocidentais chamam Deus, e ele precisa preservá-la, não a pode deturpar nem negligenciar. Quando se observa um dos primeiros estudos feitos na África, percebe-se a grande dificuldade que os historiadores e os antropólogos tiveram, porque não existiam registros escritos e como não se dava importância alguma às descrições orais, coisas horrorosas sobre a África e estudos deficientes sobre as culturas africanas, foram escritos por estes “especialistas”.
Os povos africanos acreditavam que quando receberam a palavra, a incumbência deles era de mantê-la de forma integral, e quando faziam isso, projetavam em quem os ouvia, a força sagrada da mobilização, chamada por eles de axé. Você passa o axé, passa o dínamo da vida pela palavra, pelo hálito.
Ronilda, minha professora e orientadora de mestrado, dizia: "...uma boca adocicada, que pronuncia palavras doces, para ouvidos que querem acariciá-las...". É essa a relação. Temos que estar preparados para ouvir. A oralidade é motivadora, estimuladora e transformadora do Cosmo, do Universo. Ao falar, o africano projeta e constrói cenários. Uma das maiores dificuldades do africano em relação ao Ocidente, é entender essa dissociação que o ocidental fez entre a palavra e o gesto. Existe uma passagem belíssima de Leopoldo Sengor que foi presidente do Senegal e um grande poeta, que falava sobre sua presença na Europa. Quando uma pessoa ao se despedir dele, dizia "um abraço" e saía, ele ia atrás da pessoa e a abraçava. Ele não conseguia entender essa dissociação entre gestos e palavras que é tão comum no nosso cotidiano. Ele não entendia isso. O africano quando fala, reproduz a palavra sagrada e constrói o cenário.
Quando nasce uma criança de tradição ioruba, o nome dela só pode ser pronunciado pela primeira vez em um local sagrado porque o nome dela é a sua vocação. Por exemplo, a minha filha chama-se Boladi, que é alguma coisa parecida com "aquela que despertou com o ovo e trouxe alegria, felicidade, honradez e bençãos ao lar dos pais". Para o Ioruba, quando você pronuncia isso, o Cosmo começa a conspirar para que se realize o desejo implícito no nome. A palavra tem poder. O africano não mente, o Ioruba não pode mentir. Existe outra passagem que eu sempre conto e que é muito engraçada a respeito do choque cultural. Um indivíduo foi inocentado de roubo por um tribunal de toga, peruca, essas coisas, nos moldes ingleses, por causa da colonização. Quando ele saiu do tribunal um sacerdote bloqueou a saída dele com um ferro e disse: beije esse ferro e olhe para mim e diga se você realmente cometeu esse crime. O homem beijou o ferro e disse: "eu cometi esse crime". Disse isso porque não se pode mentir diante do sagrado.
É fundamental entender essas coisas sobre a oralidade africana. Quando se vai a uma escola de samba, a uma roda de capoeira, a uma casa de candomblé, canta-se a noite inteira, porque é preciso falar, temos que falar.
Logo depois da expulsão dos americanos de Cuba, em 1961, na Baía dos Porcos, fizeram uma grande manifestação em Havana. Uma mulher subiu ao palco e disse: "Fidel eu te amo porque graças à revolução eu aprendi a ler, eu nasci escrava". Continuou a falar e quando não tinha mais nada para dizer, começou a cantar, quando não tinha mais nada para cantar, começou a dançar. Fidel então disse uma coisa belíssima: "a quem nunca foi dada a oportunidade de falar, quando pode falar tem que falar mesmo, e a nossa obrigação é ouvir".
 
Espaço-Tempo
 
A segunda coisa importante para o africano é a relação espaço-tempo. Isso é fundamental. A tradição do ocidente comporta uma visão de espaço-tempo linear: começo, meio e fim. A partir da tradição judaico-cristã, principalmente, isso é plantado e passamos a ter uma noção de história linear. Sempre se marca o antes e o depois de um acontecimento qualquer. Ficamos com a idéia de que o tempo sempre vai no sentido único e o espaço reproduz essa possibilidade linear de tempo. Sempre se pensou assim até que a física quântica mudou essa noção.
Algumas comunidades indígenas têm uma relação de espaço-tempo circular. Elas acreditam que tendo no passado uma vida extraordinária, essa vida vai voltar um dia. Como somos um grande povo, guerreiro, que fez muitas conquistas, isso vai voltar porque tudo acontece como se fosse um círculo.
Para o africano não é assim. Ele tem uma relação de espaço-tempo que eu gosto de chamar de sincrônica, não no sentido psicanalítico, mas num outro sentido. O africano acredita piamente que o seu mundo se desenvolve de forma simultânea em espaços distintos. Ele acredita que há um mundo onde está o sagrado, onde estão os ancestrais, as coisas mais importantes da vida dele. É um mundo onde ele desempenha sua trama, sua história. Um condiciona o outro, não são estanques, não são distintos, não são separados. O africano precisa reinventar essa relação de espaço-tempo no seu cotidiano; é fundamental para entender a reinvenção da África no Brasil. Ele acredita que o seu universo cosmológico e o seu mapa geográfico, precisam ser reinventados no lugar onde ele está, porque ele depende daquilo. É isso que lhe dá um sentido de sincronicidade. Ele não pode esquecer a sua história, não pode ser extinto para a sua história. Mitos africanos contam que quando os primeiros catequizadores chegaram à África acharam que o povo era bárbaro, porque dizia coisas como: “eu atiro uma pedra ontem e amanhã eu acerto um pássaro”. Esse era o conceito de reversibilidade de tempo que não existia para os ocidentais mas os africanos já conheciam isso dos seus textos sagrados com mais de 2000 anos.
 
Ancestralidade
 
Para entender as culturas africanas, é fundamental entender a relação que elas têm com a ancestralidade. Envelhecer é uma dádiva para os africanos. Ninguém depois de velho vai para o asilo. Para o africano, o velho ancestral é insubstituível. Eles adoram seus ancestrais de tal forma, que os enterram em casa, para mantê-los perto de si. Mesmo que o velho não tenha nenhuma noção da vida, tenha perdido totalmente a racionalidade, assim mesmo ele é adorado. Há uma passagem no filme Amistad, do Spilberg, que mostra uma pessoa tentando convencer um advogado a defendê-lo na Suprema Corte dos Estados Unidos. O advogado diz: "Você está sozinho" e ele retruca: "Não estou sozinho, meus ancestrais estão comigo. Eles estão me dando força, inteligência, resistência". O africano carrega o ancestral em si, o ancestral cosmológico e o ancestral mesmo, é um pedaço de osso dele. Eles adoram os seus velhos. Envelhecer entre os africanos é o máximo. Sabem por que a dona Menininha é chamada assim? Porque ela era menininha mesmo. Para entrar na roda das velhas, precisava ter no mínimo 70 anos.
Esses são então os três aspectos importantes para entender a cultura africana e a ioruba em especial: a idéia da oralidade, a relação espaço-tempo e a questão da ancestralidade. É fundamental entender isso.
Os três grupos africanos que vieram para o Brasil não são homogêneos, pelo contrário, têm grandes contradições internas entre si. O primeiro grupo que chega, é formado pelos Bantos, ntu é uma coisa parecida com homem, banto seria a humanidade para eles. São da região do meio da África para baixo, especialmente de Angola e Moçambique, e vêm para o Brasil, escravizados. Os Bantos hoje formam uma população de 350 povos diferentes. É muito complicado e quando se fala de banto, se fala no sentido geral, genérico do termo.  
 
O banto é um povo extraordinário que precisa ser estudado mais profundamente. Da África Ocidental, mais precisamente de um lugar chamado República Popular do Dahmé, vieram os Gege. A história deles é muito bonita e podemos conhecê-la no livro Orixás de Pierre Verger. No seu livro Fluxo e Refluxo, ele descreve a comercialização entre Brasil e África durante quase trezentos anos. No livro Orixás ele conta a história de um lugar sagrado no Maranhão chamado Casa das Minas. Supõe-se que essa casa teria sido fundada por uma mulher africana, mãe de um rei do Dahumé. Escravizada, foi trazida para o Maranhão plantando ali, a tradição de sua família. Quem conhece o Maranhão percebe a presença dessa cultura no dia-a-dia do povo maranhense. Sérgio Ferreti estudou bastante e escreveu diversos textos sobre a cultura gege. Foi este povo que trouxe o Vudu entre outras coisas.
O outro povo que veio para cá, e tem uma presença forte, é o Ioruba, que é o meu povo. Lidamos com essa cultura no nosso dia-a-dia, mas não a conhecemos. Os iorubas começam a chegar em massa na segunda metade do século XIX. Nesse momento começa a se fragmentar o grande espaço humano dos iorubas. A última intervenção colonial na África dividiu as suas terras em três países. Hoje eles estão na Nigéria, onde se situam todos os espaços sagrados, no Dahumé e no Togo. A genialidade européia abriu o mapa e foi dividindo a África em pedaços, dividindo assim o povo ioruba.
Nesse período começou a se fragmentar o grande espaço geográfico dos iorubas e eles começaram a chegar no Brasil trazendo a sua cultura, sendo os responsáveis pela implantação da cultura dos Orixás. Os bantos trouxeram a cultura dos Nkises e a magia da Terra. Fazem um pacto com o ancestral da Terra e carregam a Terra dentro de si. O povo gege cultua o vudu: eles entram na alma de outra pessoa e dizem o que vai acontecer.
A mitologia diz que três princesas africanas compraram sua liberdade, voltaram para a África, recuperaram o conhecimento ancestral e retornam ao Brasil onde plantaram sua cultura. São as mulheres fazem este trabalho. Há três lugares importantes: Casa Branca do Engenho Velho, primeiro Candomblé do Brasil; O Candomblé do Cantois, da Mãe Menininha e o Ilê Axê Ogo Fonja, que tem a orixá mais importante hoje, que é a mãe Estela de Oxossi. A minha família faz parte da Casa do Ilê Axê do Oloroquê, que foi plantado por um senhor com o nome brasileiro de tio Firmo e uma mulher chamada Maria Violão. Hoje nós migramos para a família do Cantois.
Os Iorubas têm uma importância muito grande na cultura brasileira. Apesar de ter sido um povo pequeno, são responsáveis dois grandes legados de conhecimentos: a cultura dos orixás, plantada pelas mulheres e a cultura dos ancestrais, plantada pelos homens, na Ilha de Itaparica. Ali se faz o culto chamado Babaegun, dos ancestrais masculinos. São os nossos pais ancestrais homens, a mulher não tem culto ancestral individualizado, só coletivo. Os iorubas preservaram no Brasil, coisas que já se perderam na África, como a cultura Keto. Quem quer estudar essa cultura vem para o Brasil, especialmente para a casa Cantois, onde ela foi preservada.
Os Iorubas introduzem também na cultura brasileira, a sua forma de ver e sentir o mundo. O homem ioruba não tem nada a ver com o desencantamento do mundo Weberiano. Para o africano e para o ioruba em especial, o mundo é um processo permanente de encantamento. Ele acredita em magia e opera mecanismos para constituir essa magia com a água, com as folhas, com o vento, fala com o ar e acredita nesse mundo encantado. Isso é fundamental para entender a cultura ioruba que vem para o Brasil.
Com a introdução desses elementos importantes na cultura brasileira, surgem grupos como o Olodun, que é um nome contraído do nome sagrado de Deus -Olodumare, a Terra em expansão - Ilealhê, o povo do Ketu - Araketu, , e o princípio de transformação cósmica fundamental - Axé. Os iorubas, vivem para preservar e ampliar o axé, para eles, tem axé quem vai e faz. Outra coisa importante nesse legado é o conceito de Iuá - integridade, quem não tem integridade não constrói. Abá é um conceito fundamental para o ioruba: é o desígnio dele, ele vem para cumprir uma função, é co-autor da criação. Quem assina é Olodumare mas ele, Ioruba, tem a digital colocada na criação.
Outro aspecto importante, é a riqueza da cultura ioruba. Hoje ela é comparada ao que há de mais moderno no estudo da física quântica, em especial à relação espaço-tempo.
Por último, os mitos, relevantes para o ioruba, não são meras histórias. O mito representa o momento onde irrompe o sagrado na Terra. Eles são transformados como se fossem pessoas, homens e mulheres, mas são energias cósmicas, os orixás são energias cósmicas.
Temos ainda grandes núcleos de conhecimento da cultura ioruba, primeiramente com relação às folhas. O africano não arranca uma folha impunemente. A folha é a seiva de sua vida, e todas as folhas têm função, não existe o conceito de “mato” para o ioruba. Por exemplo, as folhas das amoreiras são as folhas sagradas para os ancestrais.
O processo chamado jogo divinatório também é muito importante. Para o africano, não é um jogo de adivinhação, mas sim, a possibilidade de entender o seu mapa humano, seus desígnios, as grandes diretrizes da sua vida, como ele pode contribuir com a criação.
O Panteão é outro elemento importantíssimo, e que foi reinventado no Brasil. Para se conhecer a cultura ioruba é preciso conhecer minimamente os seus Panteões.
 
Mitos
 
Energias Cósmicas
Os mitos são para os Iorubas, o que a Torá é para os judeus, o que a Bíblia é para os cristãos, o que o Corão é para os islâmicos. Os mitos para os africanos são os seus textos sagrados e são sorvidos com a mesma sacralidade que esses textos escritos. Os mitos são muito anteriores aos textos sagrados das referidas religiões. Os Iorubas têm registro na história de cerca de 40 mil anos atrás. Faziam parte de uma sociedade chamada Noki, que se desenvolveu na região próxima da planície do Rio Niger. Cerca de seis mil anos atrás, eles começaram a passar por um processo de re-iniciação de linguagem e foram constituindo o que se conhece hoje, genericamente como civilização ioruba. É um povo muito antigo. Há um texto de Picasso em que ele fala sobre a importância da estatuária ioruba para sua produção cubista, pois toda a cultura africana e especialmente a ioruba reproduz conceitos.
 Para entrarmos nos mitos, é necessário tomar algumas precauções:
Primeira: quando eu falo em Ioruba, estou falando da cultura que foi transferida para o Brasil pelo povo desta região da Nigéria. É uma cultura, uma civilização e uma religião de matriz africana. São três matrizes africanas no Brasil, do ponto de vista religioso e cultural: Ioruba, Gege e Banto.
Não estou aqui falando de culturas afro-brasileiras. O Brasil tem na sua estrutura uma religião genuinamente brasileira chamada Umbanda que mobilizou o conhecimento do catolicismo popular, o panteão ioruba e o conhecimento espírita kardecista. A Umbanda sistematiza a noção kardecista de espiritismo no período de 1880 a 1930, na região da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Nos anos 40 já é uma religião formada, com liturgia e com corpo sacerdotal. É uma religião brasileira, em função das circunstâncias expostas, consideramos que é uma religião afro-brasileira. Este núcleo religioso foi passando por grandes mudanças. A Umbanda passou por um processo de branqueamento. A perseguição era tão violenta até aos anos 80, que mesmo na Bahia, era impossível realizar atos litúrgicos. Para escapar das perseguições, a Umbanda foi embranquecendo eliminando a presença de seus instrumentos africanos. Para se ter uma idéia, havia uma Umbanda no Rio de Janeiro onde se tocava piano. Não considero isso degeneração, eu respeito toda e qualquer opção religiosa, mas existem Umbandas mais brancas e mais negras, com tabaqueiros, com cultos ao preto velho, ao índio, aos ancestrais brasileiros.
Há uma dimensão chamada Quimbanda, que também faz parte deste núcleo originalmente banto, e que tem uma forma de trabalhar a sua religiosidade que hoje chamaríamos de forma religiosa de "magia negra". Não gosto deste termo porque acho que esta é uma definição imprecisa. Considero mais "magia branca". Foi formado um panteão baseado em preconceitos. Por exemplo, uma das grandes deformações acontece com a deidade de nome Exu, que foi associada no ocidente ao demônio, e as pessoas começaram a fazer cultos a ele acreditando nisso. É uma religião feita no Brasil e há uma dimensão híbrida disso, que é o chamado Candomblé de Caboclo. Quando os Bantos chegaram ao Brasil, por terem uma relação muito forte com a ancestralidade via terra, queriam conhecer os donos da terra, no recôncavo baiano, e entenderam que os donos da terra eram os índios. Criaram o candomblé caboclo que venera o índio e é uma cultura forte em Salvador. São fortes os blocos de índios no carnaval baiano. Os blocos de caciques iorubas são manifestações africanas.
Segunda: as culturas se comunicam, o Ioruba que conhecemos no Brasil hoje, é Ioruba do Brasil que tem similaridade com manifestações de Cuba, dos Estados Unidos e da Nigéria; mas há assimetrias também. A dimensão cosmológica e geográfica que se tinha na África, não existe no Brasil. Aqui foi reinventado um espaço geográfico e um espaço cosmológico. Em uma casinha de matriz ioruba, temos a representação do espaço físico dos Iorubas e toda a geografia da Nigéria. É fundamental ter o chamado espaço-mato, que é um espaço externo, onde existem todas as folhas sagradas. Não importa o tamanho. Pode ser uma floresta ou um canteiro. O importante é, como se disse, reinventar aquela geografia e cosmologia no espaço dado.
Terceira: como não é uma cultura em conserva, ela se comunica com outras culturas e apresenta níveis diferentes. Todas as culturas africanas têm algo dessa cultura, que é genuinamente africana e somente reservada a pessoas iniciadas que tiveram em si a inoculação do axé, que entram em contato com os instrumentos sagrados e podem se nutrir dessa sacralidade. Outro aspecto, é de certa forma a síntese do que nós conhecemos, das festas e contatos públicos, dos textos e cantigas que têm coisas originalmente africanas, ou não, e algumas outras que gosto de chamar de “re-semantizadas”, que são invenções brasileiras, isto é, que só existem no Brasil. Para se pensar a cultura africana, em especial a ioruba, é preciso estar consciente de que esta não é uma cultura congelada, como se fosse um livro que se abre, se vê o africano ali com os seus hábitos, e depois se fecha. Não existe algo assim.
Por ser uma cultura aberta, ela se propõe a reincorporar outras culturas. Para o Ioruba, o mundo não foi criado, o cosmos teve um início de criação. Ele não pensa da mesma forma que o cristão, que o mundo foi criado por Deus em seis dias e que o sétimo dia foi dedicado ao descanso. Para o povo ioruba, há um início no processo da criação do mundo que continua em expansão permanente. É um sistema aberto que vai incorporando, vai reinventando, vai “re-semantizando”. E é assim que se trabalha na cultura ioruba contemporânea.
Quero apresentar os mitos numa perspectiva que considero contemporânea. É impossível se falar de coisas sagradas ou profanas no Ioruba sem tangenciar o sagrado. Não falo de questões sagradas, não me sinto no direito de revelar um segredo que os velhos não revelaram, e que só é revelado no processo de iniciação. O que vou passar para vocês é a dimensão profana dos mitos. Gosto de narrá-las de uma forma agradável e mais adequada a este tipo de debate.
Os textos estão na matriz da cultura ioruba. Quando pensamos sobre os textos, trabalhamos com a idéia de aproximar as pessoas de um conceito complexo. Para o Ioruba, o importante não é a história, por exemplo, a descrição...”...a pessoa foi lá e tirou a folha...”... O que é importante, não é esta descrição, mas sim o conceito encerrado dentro dela. Se “a pessoa foi lá e tirou a folha”, ela provocou uma reação no Cosmos que não tem como controlar. Para ir a um determinado lugar e tirar uma folha, a pessoa precisa orar para aquela folha. Tem folhas que não se arrancam, é preciso deixá-las cair; há folhas que se arrancam à noite e outras de madrugada. É preciso seguir, dentro dos mitos, um certo padrão de conhecimento para não se profanar o axé, não eliminar a nossa força mágica no que tange à capacidade de intervenção no Cosmos. são essas idéias e conceitos que estão presentes nos mitos.
Reinventamos isso no Brasil. As velhas tiveram percepções extraordinárias. Digo isto porque essas mulheres são especiais mesmo! Dona Menininha, Dona Bibiana, são mulheres negras que numa situação de adversidade total, construíram culturas que são invejadas no mundo inteiro. Elas são patrimônio da cultura nacional. Temos também a história de uma senhora maravilhosa chamada dona Senhora que vendia acarajé no Mercado Modelo, em Salvador, juntou algum dinheiro, foi para Itaparica onde comprou um terreno para criar o culto dos ancestrais e colocou esse espaço na mão de um homem que ela não conhecia. Quem daria uma propriedade sua a alguém desconhecido? Essas mulheres são realmente especiais! Elas remontaram o panteão no Brasil. Na Nigéria acontece assim: se uma pessoa é de Ogum e quer iniciar-se em Ogum, tem que ir para Irê, que é a cidade que cultua Ogum. Se quer iniciar-se em Iemanjá, vai para Belcurá, que é a terra onde se cultua Iemanjá. Então, quando estas mulheres reinventam o panteão no Brasil, elas reinventam a Nigéria, enfeixam todas as cidades nigerianas em um pedacinho. Ali elas juntam o Cosmos!
O Panteão na África varia muito. Há regiões que têm mais de mil orixás. Com tudo isso, essas mulheres criam o panteão dos dezesseis mais importantes. Com o tempo, vai crescendo esse panteão porque desta forma se reaprende a cultura africana. Reinventaram também a atividade pública desta cultura.
Quando se chega a uma destas festas, é preciso lembrar que muitas vezes ela começou um mês atrás. As pessoas chegam à festa no último dia, porque numa transformação da forma de organização prévia, todas as atividades religiosas já aconteceram, não prejudicando mais o espaço sagrado. O terreno tem que ser sacralizado pois a terra é fundamental. Nesse espaço sagrado, o Ioruba anda descalço porque precisa nutrir a energia da mãe terra; precisa estar em contato com ela. A terra precisa ser inoculada de axé e é preparada para isso. Há espaços profanos e sagrados naquele Ilê Axé.
Essas mulheres reinventaram a forma ritualística de concentrar em um único dia as atividades de um ano. No primeiro momento temos as atividades sagradas, restritas aos iniciados: passa-se o dia inteiro fazendo atividades sagradas e ao final é promovida uma festa pública para fazer a explosão do axé. Se tudo fosse feito sem a festa ao final, o axé ficaria restrito. Com a festa encerrando o acontecimento, injeta-se axé na história do Cosmos, isto é, a pessoa sai injetada desse axé. O objetivo é manter o equilíbrio cósmico. A função do Ioruba é preservar o axé, e por isto se fazem festas públicas: para dançar e para comer. Há uma atividade chamada Axexê, que acontece quando uma pessoa morre. Terminamos na minha casa o Axexê de um ano. A pessoa morreu feliz porque estava muito velha. Foi a morte calma de alguém que implantou sua ação, que preservou a família. Para nós, ocidentais, é estranho chegar num lugar onde as pessoas estão lembrando a pessoa morta,cantando, dançando e comendo muito, porque aquela pessoa deixou uma coisa feliz. É muito diferente de ir ao enterro e chorar pela pessoa. As pessoas ficam felizes quando a pessoa morreu feliz.
Os mitos nos deixam história, liturgias, cantos, danças, filosofia, e conhecimento. Eles englobam tudo. Tudo o que se vê nos mitos está ligado àquela liturgia que foi desenvolvida. A música, por exemplo, está sempre presente. Não pode haver atividade religiosa sem música porque as pessoas se ligam à dança, ao canto e à música e assim, o sagrado se manifesta. O sagrado só se manifesta desta forma.
A roda também é sagrada para o Ioruba. Normalmente nas casas tradicionais, as mulheres formam a primeira roda. Nós trabalhamos com a seguinte idéia: num determinado momento, a humanidade teve um desdobramento comum - há mitos que são patrimônios da humanidade -. O Ioruba acredita que ele gerou a humanidade. Para ele, a humanidade independentemente da cor da pele, surge na África. É o orixá que gera a humanidade, por isso podemos ser irmãos, independente da cor da pele.
Há mitos que são compartilhados por outras tradições. Do ponto de vista da Antropologia, trabalha-se hoje com a idéia de que a civilização e a humanidade surgem na África. A primeira grande revolução tecnológica também aconteceu na África. O homem aprende a ser homem na África. Voltando ao parágrafo anterior, quando se forma essa roda, é para preparar a manifestação do sagrado; é por isso que existem rodas de samba, de capoeira, de candomblé, e de conversa também. Meu avô dizia que os velhos se reuniam na árvore das palavras. Eles se reuniam e ficavam conversando, ajoelhados horas a fio, pitando, tomando uma cachaça e cuspindo do lado. Nós montamos um oráculo chamado "A Árvore das Palavras" em função dessa concepção dos velhos. Mostramos com isso o quanto a roda é importante para o Ioruba. A roda formada por mulheres gira no sentido anti-horário, com a intenção de provocar reações no Cosmos para que se criem as condições necessárias para o sagrado se manifestar. É como nadar contra a corrente, você provoca reações físicas no seu corpo. A roda é em sentido contrário e é formada só por mulheres porque, dentro da cultura ioruba, elas são mais poderosas.
No Brasil, nos dirigimos do que é mais próximo do homem até o mais sagrado. Todos os toques utilizados são variações disso. O gan (agogô) é o mais importante instrumento dos Iorubas. O tocador é o dono da orquestra formada por três outros atabaques. Tocam-se sempre com varinhas consagradas, tiradas da goiabeira - árvore sagrada de Ogum -, que são temperadas, tratadas, deixadas descansando. A mesma coisa acontece com relação ao ferro: percutir ferro é uma prerrogativa do orixá, de Ogum, e só se faz isso na guerra, no combate. Não se pode fazer isso impunemente. Ogum é o grande ferreiro celestial. Eu sou ligado a esta energia do ferreiro, da transformação.
Cada um dos toques tem uma função. Temos os toques mais calmos que trazem as energias mais tranquilas, aquelas que preparam as condições do sagrado se manifestar. Vêm as energias mais guerreiras, e depois as especiais, de uma mulher especial chamada Oiá. Existem também toques mais mágicos, como o de Oxum. Há aquele que é do senhor da terra, da energia da terra, que é muito poderoso, e muitos outros. Os toques repercutem uma história mitológica, eles não são aleatórios.
O tocador passa por um processo de aprendizado, às vezes longo. Para se aprender a tocar o gan, às vezes demora-se de cinco a seis anos treinando. Sem tocar o gan, não se consegue tocar o atabaque que demora vários anos . Em Cuba foi preservado o bataque, que nós perdemos no Brasil, e é um tambor que se toca com as duas mãos, e é dificílimo. Enquanto uma mão toca uma coisa, a outra toca outra coisa diferente. É necessário aprender a administrar os hemisférios cerebrais. As pessoas passam cerca de dez anos para aprender a tocá-lo, e tocam em um pedacinho de madeira. Passam o ano inteiro tocando essa madeira, depois passam um tempo aprendendo a tocar em um instrumento mais simples, depois em um mais complexo, até aprender a tocar no último dos bataques. Há um processo de aprendizado que os mitos trazem.
É como em uma roda de capoeira: não se ensina a dar golpes mortais, mesmo porque os mortais são prejudiciais. A pessoa que faz vinte ou trinta mortais, não consegue jogar capoeira por muito tempo porque seu joelho fica danificado. Os velhos que jogam capoeira, como o João Grande, que é um ás da capoeira e tem oitenta e poucos anos, e o João Pequeno que jogou até os noventa anos, respeitaram o processo de aprendizado. Primeiro é necessário aprender a jingar, a se esquivar. Para aprender, é preciso entrar neste universo cultural, não se conseguem resultados de imediato. É uma cultura que demora para ser aprendida e quem montou a capoeira e suas regras foram os velhos. Hoje fazemos exatamente o que os velhos faziam há 150 anos, e o panteão tenta trabalhar com isso, com essa idéia mitológica.
Antes de entrarmos nos mitos, só para vocês terem uma idéia de como tratamos de coisas complexas, vamos olhar para o mapa do território africano. As fronteiras da África são totalmente artificiais e retas porque os colonizadores abriram o mapa e foram dividindo e distribuindo territórios para os ingleses, para os franceses, e por aí vai. Outras culturas entraram em contato com as culturas africanas. A primeira e mais importante foi a cultura hebraica. Existe um mito africano que diz que quando Moisés foi tirar seu povo do Egito, parte desse povo não atravessou e foi para o Sul, para a Etiópia. Aí foi criada uma das culturas mais extraordinárias no campo do Judaísmo, que são os falachas (raz faláchias). Eles foram mundialmente popularizados através da música de Bob Marley e Peter Tosch, pois, lá seria entronizado o Rei Leão, e eles se consideravam "o povo escolhido", os verdadeiros hebreus.
Uma outra influência forte na África foi o catolicismo Copta, na região da Etiópia, em um local chamado Lalibelo, com catedrais esculpidas na pedra, sendo a maior delas, a catedral de São Jorge. Há uma forte presença católica na África, muito anterior à existente na Europa. O islamismo também marca sua forte presença. Inicia-se na região da península arábica, por volta do século VII, anos 620/630, período em que a região passa por uma significativa mudança cultural. Bem antes da influência árabe alcançar a Europa, Mohamed, um grande profeta, começa a juntar o seu povo através do sagrado Alcorão e vai islamizando todo o Norte da África. Existem nações africanas que são genuinamente islâmicas, como a Mauritânia, o Sudão, e o Egito. Este movimento de islamização, continua em direção à Europa; atravessa o Estreito de Gibraltar, e entra na Península Ibérica, levando a cultura e a civilização árabes a essa região. Todos sabem que os textos clássicos de Aristóteles e Platão, foram recuperados graças a esse movimento; sabe-se também que o conhecimento da medicina e hábitos, como o de tomar banho, foram levados para a Europa pelos árabes.
A Nigéria de hoje é tão significativamente católica como islâmica, tendo a última, dirigido o país com mão de ferro durante muito tempo, perseguindo as populações de origem não islâmica. Além destas duas, conta também com a presença judaica. Na Nigéria existem ainda outras culturas, onde a ioruba é apenas uma delas. Os Iorubas vivem na Nigéria juntamente com mais de cem povos diferentes, com culturas diferentes, com pensamentos diferentes. Uma parte dessas culturas foi mobilizada para reinventar no Brasil essa tradição, e quando se levam em consideração esses mitos, deve-se considerar também os fatos histórico-sociais. Os Nagôs são os Iorubas de uma região da Nigéria chamada Oió que era a terra onde existia o maior exército ioruba. Esse nome é um termo pejorativo criado pelos franceses, e o termo correto é Anagô, que significa sujo. Quando chegam ao Brasil, reinventam esse nome que passa a ser um termo de identidade dos Iorubas. No Brasil você pode chamar esse povo de Ioruba, de Gueto ou de Nagô.
 
Exú - O Fecundador do Cosmos
 
Há um personagem que teve toda a sua vida vilipendiada pela cultura ocidental. Pense nesta idéia: o europeu quando chega à África, primeiro para escravizar e depois para colonizar, não quer compreender as culturas que encontra, ele quer explicá-las de acordo com o seu referencial porque precisa dominá-las. Podemos imaginar uma horda de bárbaros que entra num país que não é o seu, e vai destruindo o que encontra pelo caminho, que destrói jóias como a Capela Sistina, a Caaba, ou o Muro das Lamentações. Os europeus fizeram exatamente isso na África: destruíram a "Capela Sistina" dos Iorubas, destruíram as suas "Caabas" e os seus "Muros de Lamentações". Isto aconteceu também com a cosmologia e com o Panteão. Eles chegaram à África e conheceram uma figura que nunca tinham visto, que associaram a forma como era representado, ao diabo, dizendo: "isto não pode ser Deus, se isto se opõe ao sagrado, isto é o demônio, é o diabo". E a partir daí, o preconceito, a discriminação, o racismo e a ignorância fizeram o resto. Essa é a figura de Exú, que foi sistematizada no Ocidente como se fosse o demônio. Mas a cultura africana não admite essa polaridade de bem e mal. Não existe isso para os africanos e para o Ioruba em especial. Essa noção de que os maus vão para o inferno e os bons vão para o céu, não existe para os Iorubas. Eles têm o Orum Aiê, onde Orum é o lugar no qual se dá o sagrado, a Aiê o lugar onde acontecem as coisas da Terra. Um é o Céu e o outro é a Terra, mas em um contexto muito mais complexo. Os europeus chegaram à África, viram o Exú e classificaram-no como Demônio. Exú que é fundamental na transformação Cósmica, tem a representação de um falo humano, a representação do Ogó. Um europeu casto que entrasse em contato com essa representação, logo a associaria com a carne, com o pecado. Para o africano o corpo é uma festa e tem que ser tocado, a fertilidade é fundamental. O africano tem que ter filhos. Se ele não tem filhos, morre para a posterioridade. Para os africanos, ter filhos é uma dádiva. Quando nasceu minha filhinha, eu ficava ouvindo aquelas músicas que as pessoas cantavam... Boi, boi, boi, boi da cara preta.... Se eu cantasse isso, ela pensaria que o boi da cara preta era eu, é uma cantiga inadequada para se cantar para uma criança negra. Fui falar com uma velha africana, e ela me ensinou uma cantiga, que diz assim: "Vamos ao mercado comprar dendê e feijão porque a nossa criança vai chegar e ela é a riqueza da nossa casa". Vejam que coisa diferente! - Assim, para o Ioruba, ter filhos é importante e Exú ter essa representação é totalmente compreensível. Ele tem a representação do falo porque ele vai fecundando o Cosmos. Sem ele, o axé não se renova, e não se renovando, fenece e morre. Se Exú não fecunda o Cosmos, esse Universo morre, acaba, não tem sentido. Exú joga as sementes sobre o Cosmos, e por isso a representação de falo. Exú é o único que pode se apresentar diante de Olodumare, porque é ele o único que está mais próximo dos homens. É ele também que vigia o comportamento dos "deuses" e dos homens. Um amigo meu que é sacerdote de Exú, o Ribas, é um homem branco e escreveu uma tese maravilhosa que está no Centro de Psicologia da USP; chama-se "A Degradação de Exú como Estratégia de Dominação dos Afro-descendentes, A recuperação de Exú como Estratégia de Afirmação de Luta dos Afro-Descendentes". E é dessa forma que pensamos: degradar Exu e vilipendiá-lo, é a justificativa das violências cometidas contra o povo negro no período da escravidão. Exú transita sobre todas as cores, e as cores são importantes para os Iorubas, porque representam axés especiais, como também os elementos da natureza: a água, a terra, o fogo e o o ar, que permitem a manifestação do sagrado. Então Exú tem essa configuração constituída pelo gogó, que é a representação do falo, e pelas “sementeadeiras” que são os saquinhos que contêm os "pós mágicos", ou a representação das duas conjuntamente. Ele é a representação do vivo, da vida e da morte, de tudo que existe no Cosmos, de todas as forças cósmicas, a representação do Tudo, do Absoluto. O mito mais bonito de Exú é chamado Axé-Turá, aquele que nasceu sob a força do Axé, e depois se transformou em Oxê-Turá, filho do Axé. Segundo o mito, Olodumare chama seus dezesseis filhos mais antigos e mais poderosos, e para cada um deles dá uma missão: “...vocês vão para um lugar chamado Aiê, que é a Terra, para que as pessoas possam relembrar a nossa história. Você vai criar as florestas onde serão celebradas as memórias de nossos ancestrais. Você vai criar as florestas onde vai ser lembrada a memória de Oro...” e assim foi distribuindo tarefas. Essas dezesseis criaturas vêm para cá e começam a criar o cenário favorável para o desabrochar da vida na Terra, no Aiê. E tudo que eles falassem poderia acontecer. Quinze desses filhos eram homens, e apenas uma era mulher. Eles saíram pelo mundo afora fazendo as coisas e deixaram a mulher de lado e ela começa a sentir-se desconfortável com a situação porque sabia que ela também tinha uma função. Usa então, um poder que só as mulheres têm na cultura Ioruba. Começa a usar o poder mágico das chamadas Iami, que são importantes representações femininas. Tudo o que os homens vão fazer, começa a dar errado, Tudo acontece da forma contrária ao previsto, e tudo aquilo para eles é confuso porque a palavra tem que gerar o cenário. Se reúnem entre si, vão a Olodumare, e perguntam-lhe o que está acontecendo, ao que ele devolve:
"...E o décimo sexto de vocês?..." Eles respondem que se tratava apenas uma mulher ao que o deus responde que sem essa mulher nada iriai acontecer. Eles voltam à Terra se colocam diante dessa mulher e dizem: "A partir de agora você andará conosco por todos os lugares onde formos, porque precisamos de você." E ela responde: "Agora esse projeto perdeu o valor para mim, não tem mais importância nenhuma." Depois de muita negociação ela avisou: "Trago dentro de mim um feto. Se for um homem, vou permitir que ande com vocês, se for uma mulher, vou destruir essa realização, porque vamos construir algo diferente em outro lugar, mas há uma condição: todo o axé que vocês têm, tem que ser passado para essa criança." A partir daí, todos os dias eles chegavam e passavam o axé naquela barriga que continha a criança. Passados os nove meses nasceu Exú que foi a primeira figura individualizada criada por Olodumare.
 
Ogun - O Guerreiro, Aquele Que Transforma
 
No panteão que foi reinventado no Brasil, existe um orixá que vem em segundo lugar, é o orixá que veio construir a Terra, que veio dar base para que a Terra pudesse ser sustentada. Seu mito também é muito bonito. Os mitos não se contradizem na tradição ioruba, em função do princípio da reversibilidade do tempo. Não existe uma ordem cronológica: início, meio e fim. Alguns mitos são contados, não dentro da qualidade linear criada para o tempo, mas sim em simultaneidade, aconteceram juntos. Neste mito que fala sobre a criação, vem um ser na frente para transformar o mundo, para tornar o mundo um lugar habitável, e é ele que traz para os homens o conhecimento do ferro, da agricultura, da caça. É ele que vai civilizando o homem. Ele reinventa no Aiê o universo do Orum. É o grande ser civilizador, é quem dá a faca, a enxada, o rastelo e o facão para o homem, para que este mais facilmente dê conta da sua vida. Ele traz o conhecimento sagrado de tudo que o terreno significa nas culturas tradicionais. O conhecimento mais profundo, mais transformador, mais violento. E aqui preciso explicar porque a transformação implica violência na cultura ioruba. A transformação não é um processo gradual, é alguma coisa perto da dialética marxista: as coisas vão se acumulando e têm uma ruptura violenta. Há pouco tempo a National Geografic mostrou em um vídeo, como nascem as flores, como o botão em determinado momento explode e as sementes se espalham para poderem sobreviver. Também quando foi mostrado o colapso de uma estrela, que vai se apagando, apagando até que se concentra, se transforma em um buraco negro e vai sugando tudo que tem à sua volta. No Cosmo tudo é assim: processos de acumulação e de transformação. Quem representa isso na cultura ioruba é esse ser maravilhoso e extraordinário, Ogun. Devo meu nome a ele, meu nome real, traduzido, é "aquele cuja forja trouxe alegria". Ele tem a cara de um leão porque é conhecido pelos Iorubas como "o leão da floresta negra". É musculoso, e o símbolo da virilidade ioruba. Com a espada ele traz a transformação; vai na frente e abre os caminhos; é a figura do guerreiro ioruba. Ele representa nas cores, o axé mais negro que existe, o mais profundo, o da transformação. É ele que dá a vida ao homem. Ogun entre os Iorubas também significa a guerra. Não se pode invocar a energia de Ogun impunemente porque é a energia mais violenta do Cosmo. Não se trata de um homem violento, mas sim de uma energia cósmica violenta. Para o Ioruba, a violência não é necessariamente negativa, pois para criar, é necessário destruir o que existia anteriormente. Assim é a renovação da vida e para que aconteçam as transformações, a violência acontece. Ogun é amigo dos homens; anda sempre com os homens embora o poder esteja com as mulheres. Ogun tem uma representação muito importante para nós que cultuamos essa tradição religiosa. Ele nos mostra a possibilidade de fazer as coisas. Há um trabalho muito bonito de um amigo meu que trabalhou com crianças afro-descendentes que passaram pela tradição, e crianças que não passaram. Ele constatou que as crianças que passaram pela tradição, têm um aproveitamento escola melhor porque para essa criança, ela não é filha, neta ou bisneta de escravos, ela é filha de Ogun o grande guerreiro, o lutador, o vencedor que derrotou todas as batalhas.
O Ioruba nunca diz que Deus o abandonou, ele tem que levantar e fazer algo, e a representação disso é Ogun, o centro da virilidade masculina.
• Xangô - A Representação da Majestade Africana
Xangô é um herói da civilização, o homem Xangô. Ele morre e é transformado em orixá porque representa seus ancestrais. Representa a beleza estética do homem ioruba. Ele traz a organização burocrática, o poder. O culto a ele foi importante porque poude reorganizar os Iorubas. Gilberto Gil, Jorge Amado e muitos outros homens brasileiros importantes, são ligados a esse orixá. Ele vai agrupando todo o poder que as energias lhe trazem, por exemplo, se relaciona com Oxun e adquire o conhecimento da água, se relaciona com Oiá conhece o fogo. No Brasil ele foi transformado no orixá da justiça, por causa de seu machado de duas faces. Também é chamado de o grande feiticeiro, ele nutre o poder das mulheres e por isso foi sempre muito cultuado por elas. 
 
Oxóssi - O Grande Caçador
 
Oxóssi é o orixá que reúne o povo, é o senhor da sociedade, é guerreiro como Ogun, mas é mais emotivo. O mundo adora esse orixá, porque ele tem todas as características de Ogun, mas é mais tratável. Ele traz a abundância, a caça. Seu símbolo é o arco e a flecha. O culto dele na África está se acabando porque acabaram as sociedades de caçadores, mas o culto dele no Brasil é dos mais importantes. O Cantois, é uma casa de Candomblé que foi montada para cultuar esse orixá. Uma peça importante no culto de Oxossi é a moringa de barro porque contém a terra, que é o barro, a água, o fogo, e também o ar. Todos os elementos estão nela. É um objeto pequeno, mas tem uma representação extraordinária.

• Ossain - O Senhor das Folhas

Nos mitos há sempre a idéia de mistérios e toda a vez que existirem pássaros, existem coisas de conhecimento profundo, e as folhas também têm esta conotação. Para os Iorubas se não existirem folhas, não existe o orixá. Ossain é o orixá que conhece o ofó: dependendo de como se colhe e se pega na folha, da forma como se fala com ela, se manifesta um axé. Por exemplo, existem folhas que não se podem arrancar, pois se são arrancadas, elas perdem a sua essência. A folha tem que cair para se poder apanhá-la. Quem nos ensina isso, é Ossain. O culto dele foi se reduzindo no Brasil, pois é muito complicado aprender sobre as folhas, o aprendizado é muito lento. Vemos representantes desse orixá nos grandes mercados municipais que temos no nordeste do Brasil. As pessoas que vendem ervas, são profundos conhecedores das ervas litúrgicas e das ervas religiosas. Aqui em São Paulo, no viaduto Maria Paula, tem uma pessoa que vende todos os tipos de folhas. Essa cultura foi muito disseminada no Brasil e os sacerdotes eram os mais admirados na África. Durante a colonização. Há um momento na atividade litúrgica onde é preciso haver a saudação a todas as folhas, de todos os orixás, ou o sagrado não se manifestará. Uma das condições para se tornar um sacerdote, é ter a cantiga da sua folha.
 
Omulu, ou Xapanã ou Obaluaê - Senhor Absoluto da Terra
 
Este é o orixá mais ligado à história africana, e tem três nomes: Omulu, Xapanã e Obaluaê. Quando a terra é degradada, ele vem para vingar a terra. A referência ao orixá encontra-se no chão, no pé. Ele foi muito perseguido na África e por isso tem três nomes diferentes no Brasil. Temos uma cantiga muito linda, que cantamos, e ele dança olhando para o chão, porque os olhos podem dar a beleza, mas podem também trazer a morte.
A fala traz a verdade, assim como pode trazer a morte. Ele atua com o xaxará que limpa o mal do mundo e sempre se reverencia no chão, no pé. Uma forma de cantá-lo é mais ou menos assim: “... eu posso matar e comer qualquer um, porque ele é a representação da terra...” os colonizadores quando chegaram à África, ouvindo tais canções, pensaram que os sacerdotes de Omulu eram canibais, e destruíram os seus cultos. Os sacerdotes reconstruíram tudo novamente, mas até hoje enfrentam problemas com mal entendidos. Há um mito que diz que orixás saíram em busca de um instrumento para moldar o homem. Um levou um pedaço de pedra e outro levou um pedaço de madeira, mas essas coisas não serviam para a finalidade pretendida, então Icú, que é o nome que se dá à morte, disse à terra que iria arrancar um pedaço seu, e a terra chorou. Ele decide então fazer um pacto com a terra e diz-lhe que o pedaço de terra que pegara para fazer a figura humana, seria restituído quando não tivesse mais sentido, e é por isso que o Ioruba tem que ser enterrado quando morre.

• Oxumarê - Explica Todas as Contradições

Oxumarê é representado pelo arco-íris; é a contradição absoluta, a dialética do universo ioruba. Ele explica todas as contradições e mostra que tudo que foi criado por Olodumare é sagrado, e por esse motivo, tudo deve ser cultuado com respeito. O arco-íris representa na tradição ioruba a aliança de Olodumare com os homens. Este orixá é sublime e profano ao mesmo tempo; ele era um homem, babalaô, que foi levado à condição de orixá. No Brasil foi criado o mito de que ele é metade homem e metade mulher, isto é, atua seis meses como homem e seis meses como mulher. As pessoas não conseguem entender que ele é a mesma coisa ao mesmo tempo: tem o axé das mulheres e o dos homens, e é uma contradição em si. É um paradoxo.
 
• Oxalá - O Grande Orixá
 
O pombo é a representação de seu poder profundo. Ori significa cabeça, e orixá quer dizer a cabeça capaz de produzir axé, Oxalá é o senhor do iuá, da integridade absoluta e incondicional dos Iorubas, é um senhor que anda todo de branco. Ele é a representação do axé branco, e aqui no Brasil tem duas representações, Oguiã, que é o jovem guerreiro e Lupã, que é o velho, e se apóia em um cajado sagrado. Ele é o que há de mais sagrado, e é por isso que na Bahia, as pessoas andam de branco nas sextas feiras, como também se vestem com essa cor, na lavagem das escadas da igreja do Senhor do Bonfim. A semana dos Iorubas é de quatro dias. O primeiro dia é o da benção, o segundo é das guerras e dos combates, o terceiro é da justiça, e o quarto é o dia de abençoar este orixá. Como no Brasil temos sete dias na semana, sexta feira foi escolhido como o seu dia. Ele é reconhecido como o velho e sua representação máxima é um iguin, - um caracol pequeno -, porque o iguin deixa atrás de si um rastro. A razão de tal representação se deve à lentidão com que Oxalá se move, além de que quando ele passa, deixa um manto de sacralidade. Há um mito sobre este orixá que diz que lhe foi dado o poder para criar a terra, e ele tinha que usar para isso, um saco sagrado. Durante o processo, ele não abençoou o nome do pai e para o Ioruba, que tudo é axé, que antes de fazer alguma coisa precisa reabastecer o axé, tal falta é impensável. Oxalá é o oleiro cósmico, é ele que molda os homens. Alguns seres saem do forno mais morenos e outros mais claros, e desta forma se justifica as diferenças de tonalidade da pele das pessoas. Os albinos são adorados nas casas de Oxalá; essas pessoas são as verdadeiras sacerdotisas desse orixá. Aqueles que nascem com deficiência física sãos seus sacerdotes, porque trazem uma mensagem. Não existe o termo e o sentido de “deficiente físico” para o Ioruba.
 
• Nanã - A Grande Ancestral Feminina
 
Agora entramos no axé das mulheres. Nanã, é a importante ancestral feminina, também chamada de “a velha”. Aquela que habita o lodo, e é a grande mãe da cultura ioruba. Originalmente ela era da cultura gege, mas depois foi incorporada ao panteão ioruba como a mais velha das orixás. Ela foi a única que se rebelou contra Ogun, não aceitando a civilização dada por ele, porque queria preservar a sua identidade.
• Iemanjá - A Mãe dos Filhos Peixes
Ela é cultuada no rio e não no mar. Os cultos no mar são feitos para o pai de Iemanjá, Olocum. Um dos mitos nos diz que quando ela está em um momento de perigo, recebe axé do seu pai, joga-o no chão e corre para o mar. O culto a Iemanjá na África, é muito pequeno. É o orixá mais conhecido na América, não só no Brasil, mas também em Cuba, onde é adorada. As festas em sua homenagem, na Bahia, duram dias. Representa para os Iorubas, a mãe, não das crianças, mas dos homens, é aquela que acolhe os homens. Na mitologia nigeriana, ela é a mulher de Ogum. No Brasil, um padre resolveu escrever a história dos Iorubas, e não se conformando que estes tinham Olodumare, um pai, e não tinham uma mãe, inventou que um dos filhos de Olodumare, Ogun, violentou a mãe, já que não tinham padrões éticos; a mãe fica grávida e vai inchando, seus seios vão inchando também, até que um dia explodem e nascem todos os seus filhos, que são os orixás.
Para a cultura ioruba, Iemanjá é parte importantíssima do axé feminino. É detentora de um grande poder. Quando Iemanjá surge na terra traz a relação de maternidade para com os homens adultos, ela acolhe os homens aflitos. É aquela que melhora as cabeças, o Ori. Para o Ioruba, a noção de Ori é mais profunda, tem a ver com os hemisférios direito e esquerdo, razão e emoção. Um mito diz que a pessoa é moldada, e chega diante de uma prateleira onde escolhe sua cabeça, o seu ori, porque ele tem responsabilidade sobre sua vida. Nunca o Ioruba diz “...que Deus quis que ele fizesse isto ou aquilo...”, porque ele acredita que a pessoa tem livre arbítrio. Quem cuida dos oris é Iemanjá, e é ela que acolhe o homem que tem necessidade de afeto, de carinho. Tem uma dimensão de Iemanjá que é tão profunda, que lida com uma energia tão profunda, que nenhum homem pode se apresentar diante dela.
• Iansã - A Paixão em Pessoa
Iansã é guerreira e é também a paixão em pessoa. É ela que aparece no sonho de Ogun. Sua interpretação é um raio, e no sincretismo religioso corresponde a Santa Bárbara. Está ligada ao culto do Axexê, que é um culto de grande profundidade e significa o último rito de morte das pessoas. Tem importância fundamental na cultura ioruba, porque é a única das mulheres que transita nesse espaço. Ogum e Xangô temem a morte e ela não teme nada. Ela luta todas as lutas do seu marido Xangô. O nome Oiá (Iansã) significa aquela que rasga e representa a radical e absoluta contravenção feminina. No mito, Xangô pede para ela buscar um feitiço em uma certa terra e recomenda que não abra o feitiço e não consuma o axé. No meio do caminho, porém, não só desobedece e abre, como ainda come o que deveria transportar. Xangô ficou furioso porque aquele era um axé que lhe permitiria pôr fogo pela boca - os bolinhos de acarajé são feitos em sua homenagem. Ela representa a virilidade feminina no combate, e os mitos contam que ela é a mulher com força de homem, representa a integridade. Fui uma vez a uma casa de candomblé que não conhecia, e cheguei lá cedinho, porque queria ir ainda à casa de Oxalá. As velhas começaram a sair das casas sagradas, com roupas remendadas mas de uma brancura absoluta, o porte era reto e demonstrava muita autoridade. Iansã é a representação do poder, da paixão, do amor, da coragem, da luta, da autoridade, e da liberdade. No mito, quando ela se apaixona por outro, vai-se embora, apesar de ser casada com Ogum. Representa a liberdade para a mulher ioruba. Para todos os Iorubas, o amor acontece ou não acontece, não se aceita que o casal fique junto apenas por formalidade. A letra de uma canção que conheço, diz: "apesar do meu homem ter ido embora, eu sou feliz, porque não dependo de ninguém". A letra fala do exemplo de um ser humano, íntegro, corajoso, total.

• Oxum - Senhora do Poder

As mulheres que atuam na minha vida são de Oxum: minha iniciadora, minha mulher e minha filha. A idéia central de Oxum é a seguinte: olhamos o rio e vimos que está calmo, mas sua água está triturando pedras, esta é a idéia da mulher iorubá. É o orixá da riqueza no sentido absoluto, não se trata de riqueza material, mas de riqueza de vida. É a mãe da civilização ioruba, todos são filhos de Oxum. É a portadora do axé feminino; é ela que traz o axé para as mulheres. Todos os Iorubas se iniciam também nesse orixá porque ele traz a riqueza de vida.
Segundo o mito, daqueles três seres que vieram, um era mulher, e esta diz a Olodumare: "Ogum tem suas armas. Oxalá tem a tranqüilidade, o axé da calma. E eu o que tenho?" Olodumare responde: "Terás o poder" e dá-lhe uma cabaça e um pássaro, que são a representação do poder. Ela vem para a terra e cria uma sociedade chamada Ialodês, sendo que ela é a mulher mais importante na sociedade. Segundo o mito, sempre que uma mulher nasce, quando ela vem do Orumcuaiê, Oxum lhe dá a cabaça e o pássaro, representando o útero e a liberdade. Para o Ioruba, só a mulher tem o poder porque ela tem o útero, assim como Oxum tem o útero cósmico. A iniciação era uma prerrogativa das mulheres, só depois os homens passaram a se iniciar, porque elas podem ser mães. Nas casas antigas ainda são as mulheres que presidem: dona Senhora, dona Menininha, dona Estela - que agora vai sentar na cadeira das mulheres no Cantois. Elas são as senhoras do poder. Há uma dimensão de Oxum que não se pode dizer publicamente, e só quem pode cultuar são as mulheres.
Minha mulher é ligada a essa tradição e provavelmente minha filha será ligada também. No universo ioruba, a mulher é importante porque é ela que traz o poder de gerar. A representação deste orixá é a galinha de Angola, por isso os iniciados têm o corpo pintado.
Há dois mitos de Oxum que explicam isso: um deles é o mito de Ecodidê, que servia a Oxalá, e era filha de Oxum. Os homens e algumas mulheres, tentaram tirar o poder dela. Numa certa cerimônia, como Oxalá não pode ser tingido de sangue, eles colocaram uma pasta em uma cadeira onde ela sentaria, e Ecodidê não conseguia se desprender, depois de muito tentar e forçar, suas partes de baixo ficaram pregadas na cadeira, ela saiu desesperada correndo pela rua, atrás de alguém que pudesse acolhê-la, e quem a acolhe é Oxum. Tocando no sangue, este se transforma em plumas vermelhas. Esse mito traz a idéia da transformação. Oxalá, que é o grande orixá, vai a Oxum, pega uma pena vermelha põe a pena na cabeça, e coloca a cabeça no chão. Ioruba que vá cumprimentar ou reverenciar alguém muito importante, primeiro coloca a cabeça no chão e depois o coração. Ele está dizendo:... a minha cabeça e o meu coração, vinculados à Terra, te pertencem... É o gesto mais importante dos Iorubas. Ela faz isso e começa a cantar uma cantiga que reverencia a mulher, como a inteligência do mundo, que trouxe a vida. Reverencia a mulher que é a inteligência do Cosmo.
O outro, é o mito de Oxécurá, aquela que está grávida e que começa a conspirar contra o poder masculino, restabelecendo nos homens a responsabilidade do poder feminino. Perdemos muito desta representação no Brasil e na África. Ali existiam as sociedades das Kiami, nossas mães ancestrais, reverenciadas coletivamente, mas quando os sacerdotes chegaram à África, acharam que elas eram bruxas e que faziam magia negra e o culto delas foi destruído. Até 1929 existia o seu culto aqui no Brasil, preservado no Cantois, mas perdeu-se por causa da invenção de que elas eram feiticeiras. Numa estória inventada, dizia-se que as mulheres se reuniam em cima de uma árvore para comer o fígado dos seus inimigos. Foram muito perseguidas por este motivo, e seus cultos foram destruídos. Um grupo de mulheres, entre as quais a minha, estão recuperando essa tradição de forma íntegra e muito interessante.
Há ainda um outro mito desse mesmo orixá, que diz que essas mulheres quando chegaram na terra, pousaram em sete árvores diferentes e beberam de sete rios diferentes, elas são pássaros. O pássaro detém o poder mais incontrolável na nossa cultura. Em três dessas árvores elas só faziam o mal e em outras três árvores elas só faziam o bem. Numa árvore elas faziam o bem e o mal. O que está implícito neste conteúdo, é que a mulher pode fazer tudo. O axé do poder da cultura ioruba é uma prerrogativa das mulheres.
Ipadê é uma cerimônia muito importante no Brasil. O significado do nome é reunião, e acontece quando se abre uma porta entre a dimensão sagrada e a profana, onde é liberada uma energia que não se controla. Eu disse que Ogun era a energia mais violenta, mas pode ser controlada ao passo que a energia liberada pelas mulheres, não se controla. Pode ser reverenciada mas não controlada.
Oxum seria aquilo que no ocidente se denomina a “grande feiticeira”. A sua natureza é a água e ela é muito respeitada na tradição ioruba pelo fato de ser a grande Ialodê, a que trouxe o poder para as mulheres. Tem uma cantiga de Oxum que se canta por toda a Nigéria e que fala deste poder: "da mesma forma que pássaro têm penas brancas, vermelhas e azuis, o poder de Oxum vai me proteger, ela é minha mãe, é para ela que eu peço criança, vida longa, abundância, reverencia, respeitabilidade. Mesmo que o mundo termine em fogo, as águas de Oxum me protegerão. Eu sou sacerdote deste orixá.
Queria encerrar dizendo o quanto são importantes os debates que temos feito, para dissolver a visão preconceituosa e racista sobre as culturas africanas. O único espaço onde existe a prática do racismo no Brasil, é dentro da religião. As pessoas vão à televisão para profanar a estrutura religiosa ioruba, e divulgando e disseminando mentiras, têm a intenção política e ideológica de marcar a nossa, como uma religião de menor valia.
Acho muito importante que este debate sirva para esclarecer que, ser africano é diferente de ser ocidental, e os Iorubas não querem ser explicados pelos ocidentais. Não pretendem que alguém explique a sua civilização, cultura e religião. O que pretendem é que as pessoas compreendam essa cultura, e através dessa compreensão, possam ter maior tolerância e consigam conviver com ela, que constitui um universo diferente.
Um terceiro aspecto importante, é que as pessoas tendem a acreditar que as civilizações africanas são de menor valia, que na cabeça dos negros, ecoa ainda o legado de Hegel, "eles irão viver absolutamente na obscuridade de sua vida, de sua ignorância”. Ao contrário, as culturas africanas são muito ricas e estão servindo hoje de modelo para conhecimentos científicos avançados. Estou falando de culturas ancestrais, anteriores a estas culturas que acreditamos serem culturas de ponta.
Há hoje jovens sacerdotes que vão romper com esse estado de coisas, e que conseguirão deixar claro que o axé é muito diferente do que muitas vezes é divulgado. É um direito nosso preservar a nossa história e dizer publicamente o que nós somos. Temos o direito de defender as nossas idéias, a nossa cosmologia, da melhor forma possível. Pode ser no diálogo, como fizeram os velhos, na conversa, e se for necessário, na resistência mesmo, porque é um direito nosso. Se a nossa cultura não sobreviver, não sobreviveremos também. É um legado de vida, e esses jovens sacerdotes estão trabalhando com essa prerrogativa. Eu acredito que devemos tornar esses conteúdos mais públicos e orgânicos. Os velhos defendem a idéia de que é preciso ter mais paciência. Eu respeito a opinião deles: a opinião de seu Valdomiro de Xangô que é meu mais velho, a opinião de dona Nenê que é a minha mais velha, entretanto há a necessidade de não sermos passivos.
Não podemos fazer isso sozinhos, precisamos compartilhar esta idéia com as pessoas que acreditam na possibilidade do diálogo. Não quero dizer com isso que espero que as pessoas se iniciem, mas é necessário que tenham mais compreensão do que é a cosmovisão ioruba. É necessário que as pessoas entendam, quando passarem por uma esquina ou uma encruzilhada, e virem as coisas que habitualmente são deixadas ali, antes de externarem irritação com a situação, antes de pensarem que a encruzilhada foi o negro que trouxe da África, como lembrança da sua cultura, reflitam que ele, o negro, não optou em vir para o Brasil. Não há obrigação nenhuma das pessoas terem de tolerar estes procedimentos, como por outro lado, é um direito nosso reivindicar o direito de fazê-los. O negro não é de outra cultura, ajudou a construir este país maravilhoso e faz parte dele, como todos nós.
A última coisa importante que quero dizer, é que estou convencido que o Ricardo, aquele meu amigo psicólogo, tem razão. Estamos passando por uma fase de articulação, é necessário nos comunicarmos. Provavelmente há dez ou vinte anos atrás, eu não estaria conversando com vocês desta forma, eu talvez tivesse um outro comportamento. Acho importante este diálogo, tentamos na medida do possível, contribuir para que vocês possam amadurecer esta idéia generosa que é entender e discutir a alma brasileira e a importância dos afro-descendentes nessa alma. É fundamental atuar desta forma, me disponho a manter diálogo com vocês outras vezes, e gostaria de fazer um pacto de amizade com este grupo, colocando-me à inteira disposição, para mais esclarecimentos dobre a cultura ioruba. Gostaria por outro lado, de poder contar com a solidariedade de vocês. Hoje compartilhamos um pouco do axé ioruba e independentemente da nossa vontade, nos tornamos cúmplices desta tradição; independentemente da nossa vontade pessoal tornamo-nos irmãos nesta tradição, e irmão fala a verdade para outro irmão. Gostaria de poder ligar para vocês sempre que tivermos a necessidade de amigos com quem possamos contar para manter esse projeto.
Não é que a cultura ioruba seja diferente em relação a outras culturas, pois muitas outras têm a mulher como epicentro da sua realização, mas a minha maior tarefa, e o meu maior projeto como sacerdote, é contribuir para a recuperação da plenitude do poder feminino na estrutura religiosa ioruba, no Brasil. Dedico-me a isso, e estou à disposição para conversar sobre esse poder, quando vocês quiserem. Eu gostaria que pudessemos ter esse nível de cumplicidade. Foi um prazer estar aqui, e espero que a partir de agora vocês olhem a cultura ioruba com mais compreensão e tolerância podendo separar o joio do trigo. Obrigada e Boa Noite!

Há cinco coisas importantes para o Ioruba:
• viver muito, é bom a gente morrer velho;
• viver em abundância, o que não significa ser rico, mas dentro de uma condição onde você possa focalizar o mundo dos orixá;
• amar e ser amado, para o Ioruba é fundamental a questão do amor;
• ter filhos, é muito importante para o ioruba;
• superar as adversidades.
   
Glossário:
Kizumba – Festa
Mazomba – Confusão
Mona – Filho/Filha
Kamona – Criança
Kafioto – Criancinha
Kianda – Lagoa
Kamutue – Cabeça
Ioiô – Antigo
Henda – Misericórdia

Referências Bibliográficas: As Sete Portas da Bahia – Caribé